18/11/2015

Calmon

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas


Calmon, epifania da memória

            Além do testemunho escrito do seu labor e da sua inteligência, deixado numa obra vasta e diversificada, Pedro Calmon tinha facilidade de, imediatamente, ganhar a admiração dos seus interlocutores, graças ao raciocínio rápido e à memória privilegiada.
            Ainda jovem, conquistou o respeito do mundo intelectual da então capital da República, o Rio de Janeiro, entrando para Academia Brasileira, em torno dos trinta anos de idade, e sendo investido em importantes funções, como as de deputado, presidente da Academia, reitor da Universidade do Brasil e ministro da Educação.
            Além da memória privilegiada, que lhe permitia improvisar discursos e conferências que se tornaram memoráveis, não apenas pelo dom da palavra, mas pela facilidade de concatenar os dados pertinentes ao assunto tratado, o alegre humor verbal de Pedro Calmon desfazia mal-entendidos e dava às situações formais um discreto traço de descontração. Tudo isso sem perda da dignidade da situação, dignidade esta que era ressaltada ou, até mesmo, imposta pela postura aristocrática incorporada ao seu modo de ser.
            Pedro Calmon guardava em si muito dos traços dos antepassados que aparecem com destaque na vida palaciana do Império. Não por acaso, as primeiras páginas deste livro de memória dão relevo à nobreza dos seus avoengos. Assim, entendemos melhor como, ao longo das gerações, o gesto natural de autoridade persiste e ressalta. Uma autoridade que não parecia imposta, porque distante da arrogância, mas naturalmente aceita.
            Mesmo quando usava a presteza do raciocínio em socorro dos seus pontos de vista, conseguia simultaneamente desarmar e cativar o adversário, pelo caráter, ao mesmo tempo, cerimonioso e amistoso das suas bem humoradas tiradas.

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            Tornou-se antológica — e inúmeras vezes citada — a sua intervenção quando, em momento de turbulência na Capital do País, a polícia estava prestes a invadir a Universidade para prender um estudante. Abrindo os braços para impedir a passagem do oficial que comandava o contigente, Pedro Calmon, investido menos da autoridade de Reitor e mais da autoridade nata do seu caráter, falou em tom firme porém amigável:
            — “Aqui só se entra com exame vestibular”.
            A firmeza sem ostentação e o bom humor da intervenção descontraíram os ânimos.
            Em outra ocasião, na sisuda nação portuguesa, Calmon e Josué Montello participavam da cerimônia de inscrição de uma lápide assinalando a presença dos restos mortais de Pedro Álvares Cabral. O ministro português que presidia o ato, chamou atenção dos brasileiros para o texto que não lhe parecia correto do ponto de vista vernacular.
            A uma possível deselegância, ele sabia responder de modo irretorquível, mas com extrema elegância. Conta Josué Montello que a resposta de Pedro Calmon foi imediata (e fulminante):
            — Agora, ministro, passou a ser lapidar.
            Homem público e intelectual presente a quase todos os grandes momentos da vida brasileira do seu tempo, estas memórias de Pedro Calmon, em muitas páginas, abandonam o recôndito da vida privada para ceder lugar ao registro da história recente.
            Assim, a imaginação que reconstitui os sentimentos através da prosa amena recua diante dos fatos da História. O autor quis sintetizar em quatrocentas páginas o trajeto pessoal de quase um século e os fatos da vida nacional a que assistiu. É verdade que este desejo de síntese prejudica o sabor da conversa, que é interrompida pelo desenrolar dos acontecimentos. Muita coisa aparece telegraficamente registrada, sem que o leitor tivesse tempo de percorrer o caminho emotivo da evocação pela lembrança.
            Como passam ligeiras nas páginas destas Memórias, para ceder lugar ao turbilhão dos fatos, as lembranças não param para cumprimentar o leitor. Seguem o fio do discurso de Pedro Calmon. Mas neste gênero de escrita, onde as recordações abrem os cofres do sentimento guardado, autor e leitor querem-se encontrar num espaço compartilhado.
            — “Fica-te aí, parada na memória”.
            O verso de Carlos Anysio Melhor traduz o desejo.

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            Embora tenha escrito sobre os mais diversos assuntos, desde o direito, a literatura, a política, a educação etc., o que lhe confere a condição de um dos últimos polígrafos do nosso tempo de especificidades, a história foi o objeto de especial dedicação de Pedro Calmon. Daí, talvez, o fato de, nestas memórias, ele não ceder à tentação do devaneio e da efusão pessoal, para dar lugar à inserção do trajeto da sua vida no bojo dos acontecimentos nacionais.
            É como se as experiências vividas servissem apenas de pretexto para o relato de acontecimentos cruciais da história do Brasil. Por outro lado, a vida de Pedro Calmon, enquanto homem público que foi, confunde-se, de fato, com a vida nacional.
            Na sua existência plena de ocorrências relevantes, a memória prodigiosa retinha os menores acontecimentos. Com surpresa, encontro neste livro uma referência à visita à minha cidade do então candidato a governador. Quando Pedro Calmon disputava com Antonio Balbino o governo da Bahia, fazendo seus comícios pelas várias regiões do estado, um menino do interior passou pela barreira dos homens de paletó e gravata e chegou junto ao orador principal, que já ia falar:
            — Dr. Pedro, eu também quero fazer um discurso.
            Pela envaidecimento que a lembrança do fato me traz, peço permissão aos leitores desta coluna para a transcrição do pequeno trecho que esclarece a emotividade e a intromissão pessoal: “Em Maragogipe, um pequeno de seis anos puxou-me pelo paletó. Ergui-o no palanque e ele fez o seu discurso: era Cid Seixas Filho.”
            Mesmo um fato que era lembrado apenas pelo incerto protagonista de uma cidadezinha do interior não escapa à memória de Pedro Calmon, tão precisa para os grandes acontecimentos quanto para coisas pitorescas. É este uso prodigioso da memória que deu um colorido próprio e caracterizou a sua escrita e as suas intervenções de improviso.
            Enquanto alguns dos seus leitores querem encontrar tão somente o autor de obras em que a elegância da linguagem e o fulgor da inteligência deixaram marca, outros, os admiradores do homem público, procuram rastrear o trajeto do político, do administrador, do educador, da pessoa humana. Nestas Memórias há um pouco do muito que foi e do que fez Pedro Calmon.

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Calmon, epifania da memória. Artigo crítico sobre o livro Memórias, de Pedro Calmon. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1995, 440 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 8 jan. 96, p. 7.


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