10/11/2015

Democracia

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas


O fim da democracia

            Cientista político do Ministério das Relações Exteriores da França, Jean-Marie Guéhenno sistematiza neste seu livro um conjunto de idéias mais ou menos compartilhadas por outros observadores, embora pareçam, simultaneamente, originais e pouco lógicas, quando formuladas de modo apressado.
            A tese defendida de que o próximo milênio marca o fim da democracia e dos estados nacionais parece, à primeira vista, uma das tantas formulações sensacionalistas produzidas por uma bem sucedida camada da inteligência norte-americana, pródiga em novidades e pobre de fundamentos. Mas, acompanhado atentamente, o raciocínio do autor vai por outros caminhos, distantes do frisson superficial dos americanos, quando o assunto exige abstração, como via de regra são os temas das ciências humanas. Os franceses são menos chegados ao arrepio e mais propensos à reflexão.
            O desmoronamento da unidade soviética em face aos nacionalismos do leste europeu contradiz a tese defendida em O Fim da Democracia, mas não esqueçamos que estes países se mantiveram à margem do processo de evolução do mundo capitalista. E o raciocínio de Jean-Marie Guéhenno é aplicável ao desenvolvimento do capitalismo. A história recente dos povos subdesenvolvidos mostra como o sentimento nacional manifestado nas lutas contra a dominação colonialista começa a adormecer diante de uma aparente liberdade nacional. Hoje, os povos das antigas colônias não mais se voltam conta a metrópole opressora, porque o domínio é menos tangível. Não é que estes povos tenham se tornado soberanos e verdadeiramente livres, mas a velha forma de domínio desapareceu. Como brasileiros, conhecemos a história do nosso país e, a partir dela, podemos compreender muito bem o problema. Independente de Portugal, o Brasil entrou numa guerra absurda contra o Paraguai para defender interesses do capitalismo inglês. A indústria e o poderio comercial dos ingleses nos dominaram por muito tempo, até que os norte-americanos decidissem o nosso destino, como na derrubada do governo João Goulart.
            Em todo o mundo, o quadro é mais ou menos o mesmo. Agora, quando o ocidente não mais está submetido à guerra fria e quando uma das potências não precisa se preocupar com a passagem dos seus “aliados” para a influência do adversário, a dominação é menos palpável e mais eficaz. Se por um lado, os Estados Unidos não podem justificar aos “democratas” a invasão de pequenos países, por outro lado, os povos agredidos não mais têm como escapar da sua influência. A trajetória da revolução cubana seria simplesmente impensável no mundo de hoje.
            O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil – foi a frase síntese dos defensores da nossa submissão àquele país, a partir dos anos sessenta. Hoje, a ideologia pan-americana é bem mais ambiciosa...
            Mesmo admitindo-se um equilíbrio de forças, a partir da união européia e do crescente poderio do Japão, os países pequenos não estão a salvo do domínio dos mais fortes. Segundo Guéhenno, “As nações descolonizadas se libertaram do julgo colonial para caírem em outra servidão, aquela que lhes é imposta pelas organizações internacionais, pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional.”
            Se ontem as multidões iam às ruas protestar contra a administração colonial e depois contra as multinacionais, hoje os setores politizados da sociedade se voltam contra ajustes econômicos, políticas cambiais irrealistas, alienação de fontes produtivas de riquezas etc.
            Isso quer dizer que o poder é cada vez mais transferido para os grupos econômicos. Um sólido conglomerado de empresas pesa mais do que algumas nações nas quais elas estão instaladas. O poder invisível dos cartéis e dos agrupamentos financeiros envolve e aprisiona com suas teias o cada vez mais frágil estado nacional.
            Se no mundo feudal a terra era importante e o senhor de mais posses transformava-se no rei, este poder foi passando para os burgueses enriquecidos pelo comércio. Hoje, a riqueza econômica não mais depende da riqueza territorial, como bem demonstra o bem sucedido exemplo japonês.
            O domínio agora é menos palpável. O dominador não precisa estar numa nação e dominar outras nações. Cada vez mais ele se instala no território a ser ocupado e forma aliados entre os políticos e governantes. Assim a dominação a partir do ano 2000 não mais será necessariamente de uma nação sobre outra nação, mas de poucas pessoas enriquecidas sobre hordas de pessoas empobrecidas.
            Governos eleitos por expressivas maiorias se integram cada vez mais no grupo dos senhores do império invisível, desenvolvendo políticas sociais claramente destinadas a atender aos interesses dos detentores do capital. Esta é a modernidade a que muitos países aspiram. Esta foi a meta entusiasticamente defendida por Fernando Collor de Melo e que levou as mais expressivas forças econômicas do país a aprovarem a sua candidatura. Quando o seu governo cedeu a negociatas necessariamente atreladas a estas forças, o projeto ruiu e foi necessário a conversão de um político saído do centro-esquerda para que os interesses do “economia de mercado” fossem preservados.
            É por isso que Guéhenno reserva para a nova era o nome de imperial, ressaltando tratar-se de um império sem sede e sem imperador, onde o poder de autogerir-se foge cada vez mais aos cidadãos, cuja influência é reduzida ao cumprimento de papéis previamente estabelecidos pelos mecanismos sociais.
            Dentro deste nova organização, os lobistas, os representantes dos grupos financeiros têm lugar de destaque e o suborno deixa de ser um intruso no campo ético para tornar-se compensação pela capacidade de prestar serviços especializados que facilitam a atuação dos chamados clientes preferenciais. Esta é a lógica da eficiência, onde o capital é o bem supremo. É impossível seguir o jogo do capital fugindo das regras geradas por este jogo.
            Quando a noção de riqueza torna-se menos concreta, os valores também entram em crise. Se a riqueza se ligava ao material produzido, hoje ela reside no domínio de técnicas e dados precisos. O automóvel que marcou o nosso século exigia um investimento de quase metade do seu preço no material empregado. A eletrônica que prepara o século vindouro reserva apenas um por cento do seu preço para o material produzido. O restante da riqueza está em elementos abstratos e imateriais. Está no poder de informação de cada chip e nas descobertas exclusivas do seu fabricante. Por outro lado, numa simples peça do vestuário este custo abstrato é maior do que o custo da matéria prima. O valor da marca é o que conta. Algumas empresas vendem o seu nome a outras empresas associadas. Este é o capital acumulado, a riqueza imaterial que modifica as relações econômicas. Estas formas de poder assumem o lugar do estado, diluindo o centro de decisões.
            O estado nacional é impotente diante do poder econômico que se ramifica por vários países e se torna senhor dos indivíduos bem sucedidos. Os políticos ditos modernos são bastante liberais com relação às pretensões deste poder do capital. Eles sabem que os dias dos seus estados-nações estão contados e já se apressam em adquirir uma nova cidadania: a cidadania do mercado.
            O livro O Fim da Democracia demonstra de forma convincente como cada vez mais somos impotentes para decidir os nossos destinos e como as grandes redes operam e nos transformam em componentes de um circuito integrado. A modernidade liberal aponta como conveniência associar-se a isto. Nós, os pré-históricos, ainda acreditamos em outras saídas. Mas segundo Jean-Marie Guéhenno este grande império sem imperador que o capital institui no mundo não é uma ideologia, é um processo. Inexorável.
            O sonho acabou. E a gente nem sequer sonhou.

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O fim da democracia. Artigo crítico sobre O Fim da democracia, de Jean-Marie Guéhenno. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 132 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 13 fev. 95, p. 5.

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