10/11/2015

Educação na polícia

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas


EDUCAÇÃO, CASO DE POLÍCIA

             A vida melancólica e sem horizontes de um professor de língua e literatura francesas num colégio de Paris é agitada por acontecimentos insólitos e excitantes.
            Da monótona rotina de professor, André Jefferson salta para o mundo do crime. E de romance de crítica social, A noite do professor reescreve-se como romance policial. O autor da façanha é o escritor Jean-Pierre Gattégno, ele próprio formado em letras, professor de língua e literatura no Liceu Jules Ziegfried, de Paris. A semelhança do escritor com o protagonista não termina aí: ambos são filhos de emigrantes. Gattégno, nascido no sul da França em 1944, é descendente de pai turco e mãe grega. André Jefferson, o seu personagem central, é filho de uma egípcia com um diplomata inglês.
            Mais de cem páginas do romance põem-nos em contato com o sistema de ensino na velha França, outras noventa ou cem inserem ingredientes de suspense e trama policialesca que constituem o eixo narrativo da obra. São estas poucas páginas de ação que tornam o romance ágil e agradável ao leitor comum, fazendo com que o ritmo da obra esteja submetido à mais densa dinâmica.
            Gattégno, embora professor de literatura, não procura ser erudito no seu romance. Ele quer apenas escrever um livro capaz de agradar ao leitor, sem se preocupar com o valor literário da obra. Esta preocupação, quase sempre, transforma o produto num ensaio pedagógico, distante do encanto que a ficção proporciona. É por isso que o adágio ironiza: Literatura, quem sabe faz, quem não sabe ensina.
            O escritor preocupa-se apenas em produzir um texto ágil e dinâmico, o seu valor literário ou a sua condição de mero folhetim popular são conseqüências. Assim é que o livro consegue dosar com naturalidade estes dois elementos.

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            Creio que a literatura deste fim de século vem dando uma guinada semelhante àquela experimentada pela idade média, refiro-me ao século XV, e mais recentemente pelo século XIX, com o advento do romantismo, que, em alguns países, produziu um texto voltado para a falta de requinte artístico e intelectual do público burguês. Os chamados estilos de época sempre responderam à realidade social do momento histórico.
            Lembre-se que os intelectuais portugueses do Renascimento viram a literatura produzida no século anterior como mera diversão, pois os poetas do fim da idade média
procuravam responder ao interesse de divertimento dos salões palacianos. A cultura erudita, que animou os séculos XII e XIII, cedeu lugar à alegre despretensão da cultura popular. Com os homens do Renascimento veio o horror a tudo aquilo que dizia respeito à espontaneidade e à ingênua alegria do povo. A modernidade histórica assinalada pelo renascimento pretendeu substituir o jeito de folgar do povo pelo requinte espiritual dos homens de saber.
            Por outro lado, para encontrar audiência junto ao público burguês, a literatura do século XIX abandonou o apuro formal deliberado em favor da aparência expontânea. Com isso, muitas obras caíram no lugar comum, sem conseguir o equilíbrio desejado.
            Com o avanço da miséria e a crise educacional que se fazem sentir tanto no Brasil quanto num país desenvolvido como a França, os artistas empenhados exclusivamente no virtuosismo da sua técnica terminam recolhidos à conhecida torre de marfim.
            Os escritores mais preocupados com a resposta do leitor procuram tecer o seu discurso de fios mistos, onde a preocupação com a responsabilidade estética se entrecruza com a sedução por tudo aquilo que diverte e agrada à primeira vista.
            Não foi este o ponto de partida de Umberto Eco, ao escrever o seu primeiro romance, O nome da rosa? não continuou sendo este o modelo perseguido?

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            Assim como acredito num retorno à espontaneidade por parte da literatura deste fim de século, creio que é possível uma comparação entre o último romance de Eco, A ilha do dia anterior, e este novo romance de Gattégno. Ambos tentam a mesma fórmula, com a diferença marcada pela vasta erudição de Umberto Eco, que condena o seu último romance a se tornar tão maçante quanto as obras doutrinárias produzidas no barroco com intuitos artísticos e pedagógicos.
            Jean-Pierre Gattégno constrói seu personagem, ironicamente, como um medíocre professor de literatura, perdido numa classe disposta a tudo que não seja tomar conhecimento das suas lições sobre Flaubert.
            O público leitor, não esqueçamos, saiu de classes de literatura e de professores como aqueles que são mostrados no romance. Escrever para estes ex-alunos requer uma tática inversa à dos professores. Daí o caráter despretensioso do seu romance que, ao eleger como eixo temático uma história policial, aproveita para fazer uma análise crítica do sistema educacional.
            Esta classe de estudantes secundaristas de Paris muito nos lembra os quase doutores da universidade brasileira. Qualquer pessoa, mesmo que levemente interessada pelos destinos da educação entre nós, lerá o livro de Gattégno com melancolia, vendo aí um retrato cruel do nosso tempo.
            Ao mesmo tempo que diverte, este livro inquieta a quem tem sensibilidade para se inquietar. Se por um lado desperta àqueles que querem estar de olhos abertos, por outro lado embala preguiçosamente aqueles que querem fazer a sua sesta.
            Não é esta ambivalência que constitui o encanto da arte literária? Se você pensa assim, gostará de ler A noite do professor.

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Educação, caso de polícia. Artigo crítico sobre o romance A noite do professor, de Jean-Pierre Gattégno. São Paulo, Companhia das Letras, 1995. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 20 mar. 95, p. 5.

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