18/11/2015

Indústria

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas

Indústria da Arte

            O grande público conhece O Quatrilho como filme, mas desconhece o livro de José Clemente Pozenato. Embora em nona edição, o livro teve boa circulação no Rio Grande do Sul, que é um mercado autônomo e da maior importância, mas não chegou a ser um best-seller a nível nacional. Mesmo com a indicação do filme baseado no romance, este não obteve uma divulgação satisfatória. Ao falar do filme, a grande imprensa do país não deu ênfase à obra literária de Pozenato. Muitas matérias cinematográficas chegaram a desconhecer o fato do filme se basear no romance homônimo.
            Ao abortar este assunto, pretende-se mais uma vez chamar atenção do leitor para o excelente livro, já comentado neste espaço, além de tratar das relações entre arte e indústria. Evidentemente, o filme não consegue, em pouco menos de duas horas de projeção, reproduzir todo o mundo interior dos personagens. Obras distintas e com diferentes linguagens cada uma acentua um aspecto, valorizando elementos adequados ao público pretendido.
            Enquanto o filme, como espetáculo, dá ênfase a tudo aquilo que pode atrair à primeira vista, o livro investe no universo dos personagens, retirando da densidade psíquica de cada um deles o seu poder de comunicação com o leitor.
            Tomem-se como exemplo dois personagens do livro de José Clemente Pozenato: Pierina e Mássimo. No filme, Pierina ganha uma força, uma determinação que a personagem não tinha, sendo contagiada pela performance da atriz que a recria, Glória Pires. Já Mássimo perde em densidade na sua versão cinematográfica. O universo interior do personagem, suas dúvidas e questionamentos, bem como sua inquietação afetiva cedem lugar a aspectos mais cênicos. Em pouco mais de duas horas de projeção não se pode ressaltar tudo aquilo que o autor constrói ao longo de um romance e que é fermentado pelo tempo de fruição determinado pelo próprio leitor. Na breve cena em que os futuros amantes se descobrem pelo olhar e pelos gestos, Mássimo aparece mais como um conquistador e menos como alguém atormentado pelo drama da existência.
            Em outras palavras, o filme tem um compromisso mais direto com o grande mercado, com a indústria do sucesso, enquanto o livro mantém firme a sua ligação com as exigências da tradição literária. Isto não quer dizer que um escritor não pretende ser lido, mas ele divide esta ambição com os valores impostos pelo horizonte de expectativas da própria arte literária.
            A propósito, José Clemente Pozenato assina um pequeno e estimulante artigo no último número do jornal de divulgação da Editora Mercado Aberto com o provocativo título de “A literatura é um ramo industrial?”, onde chama atenção para o fato das premonições de Paul Valéry, Walter Benjamim e Aldous Huxley terem se tornado realidade. Eles apontavam como consequência da era industrial a exigência de que as manifestações artísticas também fossem industrializadas.
            Pozenato chama atenção para a resistência, ou o pudor, de admitir que este tempo já chegou também para a literatura. Como a criação literária é vista como algo quase sagrado, que não pode ser contaminado pelas circunstâncias do homem e da sua história, submeter este incorruptível objeto às regras impostas aos produtos industriais seria violar sua identidade.
            Deste modo, muitos escritores se sentem no direito e no dever de lançar suas mensagens em garrafas perdidas no mar, à espera de um receptor ideal. Muitos textos, contrariando os pressupostos do circuito comunicativo, não são dirigidos a ninguém, são monólogos disfarçados de diálogos e narrativas.
            Ao considerar o seu meio, a sua cidade, a sociedade em que vive, como um mero aglomerado de dessemelhantes, alguns escritores produzem para si mesmos e para uma entidade imaginária nunca vista nas livrarias, mas bastante conhecida: o leitor ideal de cada um. Ao preferir a convivência destes fantasmas, tudo aquilo que está sujo pela poeira do cotidiano é excluído ou tratado com suspeita. Nesta grande sociedade de poetas mortos, os vivos são vistos com desdém.
            O trabalho do artista não mais seria o de viver o seu momento e trazer para dentro dele novas configurações capazes de construir o tempo futuro. Como, para falar aos homens, é necessário ceder à sua linguagem e aos seus desejos, o escritor que se julga dotado de qualidades superiores, prefere falar a si mesmo e ao leitor ideal.
            A incomunicação passa a ser a pedra de toque da literatura de iniciados. Aquele que aceita o desafio de escrever para o mercado de leitores existente, de ceder às exigências de um público cada vez menos inteligente e de conseguir, ao mesmo tempo, ampliar os horizontes deste público, oferecendo aquilo que ele quer e adicionando novos clarões de entendimento, não é reconhecido como o escritor do seu tempo. É visto como alguém que cedeu às tentações do mundo.
            Umberto Eco escreveu há cerca de duas décadas um livro chamado Apocalípticos e integrados, onde discute a resistência dos intelectuais à comunicação de massa. Diante da possibilidade de se integrar a um tempo que não responde à inteligência dos poucos privilegiados, os gênios solitários preferem o apocalipse.
            Pozenato formula o problema em termos persuasivos. Para ele o que deve ser resolvido não é a relação entre criação literária e produção industrial, mas entre obra e público. Quando um escritor interrompe os seus devaneios em favor do estabelecimento de um elo entre aquilo que diz e aquilo que é entendido pelo outro, ele não está necessariamente cedendo à produção industrial, está estabelecendo um diálogo com o seu público.
            — “Não é a mesma coisa escrever para um punhado de eleitos, de iniciados, ou escrever para um universo maior de leitores. O que os novos recursos da indústria proporciona é a possibilidade de ampliar o acesso ao público. Produzir literatura para este público ampliado não é o mesmo que produzi-la para satisfação pessoal ou para um público restrito de especialistas. Imagino que nenhum escritor tem dúvidas de que deve atender ao grande público.”
            É este desafio que o autor de O Quatrilho enfrenta, tendo respondido a ele com dignidade e criatividade, ao escrever um livro capaz de empolgar às massas pela sua trama e de repor de forma pessoal e viva as inquietações do espírito.

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Indústria da arte. Artigo sobre as relações entre arte literária e produção industrial, a propósito do livro O Quatrilho, de José Clemente Pozenato. Romance. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1995, 310 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 10 jun. 96, p. 7.

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