15/11/2015

Da memória à ficção

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas


Da memória à ficção

            Zélia Gattai se firmou, no começo dos anos oitenta, como uma das mais importantes memorialistas da nossa literatura. A escritora começou a sua carreira na maturidade, alguns anos antes de chegar à casa dos setenta anos, quando muita gente deixa de trabalhar e não mais se sente motivada para qualquer projeto de longo curso. Com Zélia Gattai ocorre o contrário: toda a sua energia criativa, cultivada durante anos, eclodiu na mais completa maturidade. Daí a aparição de uma escritora já pronta e capaz de escolher os mais ambiciosos caminhos.
            Poucos escritores, nas letras brasileiras, despontaram com o necessário domínio do seu ofício. Quase sempre, aprenderam nas primeiras obras a contar uma história ou a encontrar o melhor uso das chaves da linguagem. Convivendo com o escritor Jorge Amado, desde 1945, Zélia Gattai aproximou-se do universo dos criadores e das suas preocupações, muito embora não incluísse a criação literária nos seus próprios projetos. Limitava-se a registrar pedaços de experiências, ora através do realismo e uma câmera fotográfica, ora através de artigos para jornais e periódicos do Brasil e do exterior.
            Mas, como ela própria costuma dizer, era uma contadora de histórias para os filhos e os amigos. Histórias vividas na sua infância que, na memória permaneciam frescas e cheias de vida como se ainda estivessem acontecendo; que ganhavam novo colorido na sua fala simples, direta e, não raro, cheia de encantamento.
            Sendo, portanto, uma criadora nata de “literatura oral”, Zélia Gattai registrou suas histórias por escrito, para que elas não se perdessem e para que fossem contadas a mais gente. Na solidão da escrita, soube cultivar o mesmo tom de cordialidade sedutora da fala compartilhada. Soube prender os meninos e meninas que, mesmo crescidos, continuam gostando de entrar no mundo maravilhoso das histórias contadas.
            Anarquistas, graças a Deus, Uma chapéu para viagem, Senhora dona do baile, Jardim de inverno e Chão de meninos são bons livros de histórias guardadas na memória, escritos em pouco mais de dez anos. Mas... quem conta um conto aumenta um ponto — e, ao fazer com que as suas histórias saíssem do mundo volátil das palavras faladas, onde o dito flutuava na brisa como passarinho pequeno, Zélia Gattai encontra na palavra escrita uma maneira de fotografar o vôo da ave fugidia, para que mais gente fosse testemunha do encanto.
            Então, ela não vivia com uma máquina fotográfica na mão colhendo instantâneos que deviam ser eternizados? Muito da sua vida, dos seus filhos e do companheiro Amado foi guardado por Zélia, num enfoque do seu olhar. As fotos estão nos jornais, nos livros, no álbum de família. Ao tempo em que fotografava as imagens Zélia contava histórias, criava outras imagens, feitas de palavras. E devia sentir pena de não poder fotografá-las também.
            Assim, trocou a máquina fotográfica por uma máquina de escrever e passou a fotografar as imagens do seu próprio pensamento. Na solidão da escrita, colheu instantâneos de histórias que gostava de contar. Fez-se escritora. Contou seus contos familiares. Como quem conta um conto aumenta um ponto, o vivido ou o presenciado pareciam mais vivos na escrita quando refeitos, quando aumentados num ponto aqui e apagados num ponto adiante. Assim, a memorialista transitou suavemente entre as lembranças da memória e astúcia da ficção.
            Portanto, não causa nenhuma surpresa que o romance de estréia de Zélia Gattai, Crônica de uma namorada, também releve uma escritora madura e capaz de produzir no leitor o prazer do encontro com obras de ficção da melhor qualidade.
            As lembranças dos anos passados são misturadas com fatos atuais e reconstituídos na São Paulo dos anos cinquenta. A paisagem humana é quase a mesma dos seus livros de memórias, podendo a narradora se movimentar com desembaraço e familiaridade. Mas, às vezes, a memória trai, e coisas de um tempo são transpostas para outro, quebrando um pouco a caracterização paisagística do chamado romance de época.
            Crônica de uma namorada é narrado em primeira pessoa por uma menina que, logo cedo, perde a mãe e encontra a ilusão do amor. Em meio ao dia a dia da pequena órfã, peripécias familiares e historinhas paralelas compõem o enredo deste romance que é uma canção de amor à vida. Com seus percalços e decepções, alegrias e sonhos, os habitantes do mundo romanesco de Zélia Gattai sabem que é bom viver sem ter vergonha de ser feliz.
            Para se contrapor ao mundo do neo-liberalismo, onde o sonho acabou e o homem é apenas estatística, a romancista cria um mundo perdido nos anos cinquenta. Um mundo no qual a felicidade era sempre possível e onde a miséria de uma emigrante nordestina era substituída por um futuro de inesperada luz. Onde os sofrimentos e humilhações preparavam pessoas mais tolerantes e capazes de um generoso abraço na vida. Um mundo onde o desencantado homem deste fim de século vai buscar farrapos de cores para compor o sonho e vai buscar força para continuar acreditando que é possível tornar real um pouco daquilo que deseja.
            A narradora-protagonista desta Crônica de uma namorada quer nos devolver a crença no homem e a alegria das grandes coisas pequenas. Gota de mel em taça de veneno — seriam para muitos os clarões de fantasia. Oásis em meio aos caminhos do deserto, para outros que teimam em seguir com a caravana.
            A ingenuidade da personagem e sua crença no amor contrastam com a luz implacável da realidade narrada. Por isso, o livro termina numa rara apoteose de ternura e beleza, quando uma quase adolescente passeia de mãos dadas com seu primeiro namorado. Num tempo em que havia portões para um beijo delicado e calçadas e jardins para se passear de mãos dadas pelas nuvens de um sonho vivido.

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Da memória à ficção. Artigo crítico sobre o livro Crônica de uma namorada, de Zélia Gattai. Rio de Janeiro, Record, 1995, 222 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 18 set. 95, p. 5.

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