18/11/2015

Glauber

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas



Biografia Romanceada de Glauber


            O começo de tudo, a família de Glauber.
            “O pequeno Fórum  de Conquista abriu as portas para a família Mendes de Andrade. O coronel Antônio Vicente e D. Marcelina, ao lado de seus quatorze filhos, convidavam a cidade quase toda para a grande festa de casamento de suas filhas Lúcia e Adair. É bom frisar esse quase, porque família que se prezasse, naquela Conquista de 1938, tinha que ter seus desafetos.
            No canto, duas tias velhas comentavam:
            — Lúcia é tão miudinha, parece uma menina.
            — E linda! Você sabia, Dinha, que o noivo dela é dezenove anos mais velho? Parece até pai dela.
            — Deixa disso, Cota! Adamastor é um homão bonito, cheio de saúde, trabalhador, e isso é o que interessa.
            — Dizem que ele foi noivo oito vezes antes dela, e chegou a largar uma no altar.
            — Ah, mas essa ele não era besta de largar não, Cota. Florentino disse a ele: se você deixar esta, os irmãos te matam.”
           

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            Uma escritora e um jornalista. Ayêska Paulafreitas e Júlio César Lobo. Ambos, profissionais de talento. Desta união intelectual só poderiam sair bons resultados. Com isto, adianto ao leitor que o livro Glauber: A conquista de um sonho; Os anos verdes é um trabalho bem sucedido enquanto exercício de linguagem. O texto é claro e bem escrito. Soma a objetividade do jornalista com a leveza e o encanto da escritora. Ou melhor, estas qualidades são comuns aos dois autores. A quatro mãos, eles conseguiram realçar as virtudes e minimizar os defeitos.
            Depois de exaustivas pesquisas biográficas sobre o cineasta Glauber Rocha, viagens a Vitória da Conquista, a terra da infância e dos avós de Glauber, os autores começaram a ouvir os companheiros de geração. Os antigos estudantes do Central, da Faculdade de Direito, o pessoal da Jogralesca e os colaboradores da revista Mapa.
            Como todo trabalho de reconstituição, é provável que alguns (ou muitos) detalhes não correspondam aos fatos. Os personagens envolvidos na história contada por Ayêska Paulafreitas e Júlio César Lobo podem se fazer narradores de uma outra história. Mas a narrativa construída neste livro faz com que o leitor atravesse suas mais de trezentas páginas com a mesma facilidade com que lê uma crônica de jornal. Apenas, leva um pouco mais de tempo. Mas não sente o tempo passar, porque os dados reunidos na pesquisa dos autores são dispostos de tal forma que a gente vê as cenas acontecendo e saindo aos poucos do papel. Os personagens pulam de dentro das páginas e começam a falar diante da gente. As cenas vão se sucedendo como numa seqüência de cinema, o mesmo cinema que é o eixo em torno do qual gira a aventura do jovem Glauber Rocha.
            Ayêska Paulafreitas e Júlio César Lobo não cederam à tentação de escrever a biografia do Cineasta, mas quiseram tão somente reviver o menino e o jovem Glauber. O menino que viveu em meio às mortes de mando, em Conquista. O jovem que liderou as jogralescas, ou teatralizações de poemas. O impetuoso amante, que arrebata Helena Inês das noites do high society para a conquista de um sonho impossível a dois.
            Esta livro não quer ser uma análise da obra de Glauber, mas uma síntese da sua vida, daí o recorrer à ficção para resgatar a realidade. Afinal, o que é o que nós chamamos de realidade? Uma ficção socialmente compartilhada. Uma ficção assumida por um grupo num lugar e num tempo determinados. Por isso, a realidade muda, se transforma, surge outra num outro lugar e num outro momento.
           
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            Os autores descobriram a melhor forma de atingir o seu objetivo, um objetivo modesto: levar Glauber às novas gerações. Se Ayêska Paulafreitas e Júlio César Lobo, como tantas outras pessoas da sua geração, tomam Glauber Rocha como uma figura exponencial da cultura brasileira, o mesmo não acontece com os jovens de vinte anos, de vinte e cinco ou de quinze. Estes não conhecem Glauber.
            A idéia de escrever o livro tomou corpo quando os autores descobriram que os adolescentes de Salvador só conheciam Glauber Rocha “como o nome de um cinema”. Ninguém sabia dizer o nome de um dos seus filmes.
            Mas a situação não é muito diferente em outras cidades e em faixas etárias um pouco mais distantes da adolescência. Quem tem menos de trinta anos conhece menos Glauber do que quem tem quarenta. Assim o livro de Ayêska Paulafreitas e Júlio César Lobo, embora escrito para adolescentes é útil também para um público bem mais amplo.
            E para quem conhece Glauber, este livro é um reencontro com um momento da história da nossa inteligência, com um momento muito significativo da história da cultura na Bahia.
            Ao contar uma história de forma a prender a atenção dos jovens leitores, os autores conseguiram prender a atenção de todos nós, não apenas pelo texto bem construído, mas também por recriar a vida cultural do país, vista a partir de um ângulo que privilegia a Bahia.
            Nas tintas da ficção de Glauber: A conquista de um sonho; Os anos verdes nos reconhecemos e reconhecemos o ambiente intelectual baiano visto por uma lente que amplia a parca realidade dos dias de hoje, iluminada pela ficcionalização da realidade de ontem. Quando os poderes públicos tinham verbas para investir no cinema, quando as artes tornavam a nossa Universidade um espaço privilegiado, quando a polícia tratava sem violência aos jovens estudantes, quando ainda era possível a conquista de um sonho: construir na Bahia um centro irradiador de criatividade e ação para todo o país.

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Biografia romanceada de Glauber. Artigo crítico sobre o livro Glauber: a conquista de um sonho, de Ayêska Paulafreitas e Júlio César Lobo. Belo Horizonte, Dimensão, 1995, 340 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 11 dez. 95, p. 7.
            

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