10/11/2015

Palavra e música

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas


PALAVRA DE MÚSICO

  
Lindembergue Cardoso foi um dos compositores eruditos mais criativos da segunda metade do século. Seu talento ultrapassou as fronteiras nacionais, com peças premiadas e executadas em vários países. Nascido no interior da Bahia, em Livramento de Nossa Senhora, em 1939, morreu antes de completar cinquenta anos. Iniciou-se na música através da banda (“furiosa”) da sua cidade, passando a tocar em conjuntos e bailes populares do interior.
Sua carreira como músico erudito foi breve e luminosa. Tendo abandonado a música popular em 1968, um ano depois recebia o terceiro prêmio nacional de música erudita, concorrendo com os mais expressivos compositores brasileiros. Em setenta ganharia seu primeiro prêmio internacional.
Lindembergue Cardoso fez parte de uma das turmas mais talentosas dos Seminários de Música da Universidade da Bahia, então dirigidos pelo maestro Koellreutter. Não esqueçamos que no reitorado de Edgard Santos a nossa universidade contratou grandes professores nas áreas de artes e humanidades. Koellreutter trouxe para sua escola de músico talentosos professores do mundo inteiro, o que atraiu a atenção dos músicos brasileiros que vinham completar sua formação na Bahia. Foi neste ambiente estimulante e criativo que Lindembergue Cardoso firmou-se, como um dos mais destacados alunos do compositor Ernst Widmer.

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Causos de músico é um delicioso livro de memórias de Lindembergue Cardoso. Seu relato é vivo e colorido, sua linguagem tem a naturalidade da mais animada conversa entre amigos. Beg não quis fazer literatura neste seu livrinho, sua arte era outra, quis apenas contar episódios marcantes na sua vida de músico. Mas a sua intuição de artista, sua sensibilidade e sua inteligência criadora asseguram ao texto o encanto das coisas naturais. Poucos profissionais da escrita conseguem produzir um texto tão limpo e bom de se ler. Isto é tudo que se esperava das letras de um músico.
O prefácio é de Ildásio Tavares e a orelha de Raimundo Marinho. O volume é ilustrado com fotos documentais e a capa traz um ótimo retrato de Lindembergue Cardoso feito por Ângelo Roberto.
Pena que o volume não seja bem cuidado do ponto de vista gráfico. Embora patrocinado pelo Baneb, a Empresa Gráfica da Bahia fez uma impressão mixuruca e sem nenhum respeito pelo autor. A Bahia deve mais do que um modesto opúsculo a um dos seus maiores compositores de todos os tempos. A Secretaria da Cultura, ou outro órgão que, por acaso, se sinta responsável pela promoção da cultura, tem o dever de propiciar uma edição bem cuidada e de maior circulação do livro (esta, que só foi feita graças ao esforço da viúva do compositor, ficou praticamente restrita aos amigos de Lindembergue). Causos de músico não é um livro que reúne apenas as memórias do grande compositor. É também um documento da música na Bahia. Tanto da música popular, quanto da música erudita. Embora não seja um relato longo é, sem dúvida, uma fonte de inestimável valor. Pena que sejamos uma terra de cegos, surdos e mudos...
Numa edição definitiva deste livro de Lindembergue Cardoso, as fotografias deverão receber melhor tratamento gráfico, uma vez que a iconografia do livro é por si mesma significativa.

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Causos de músico conta os percalços de uma banda de Livramento e as peripécias de jovens músicos populares numa época em que a velha orquestra cede lugar ao jazz, ou melhor, ao jaze, como se chamava o conjunto musical que incorporava a bateria, em lugar de vários instrumentos de percussão como caixa, surdo, pratos etc. Não temos neste livro um perfil musical apenas da cidade do autor, mas um perfil de um fenômeno ocorrido em todo o país. O relato de Lindembergue Cardoso ganha relevo e importância porque, embora situado e datado, com personagens listados e identificados, tem o dom de universalizar-se. Isto é: ao ler o trajeto de Beg temos um quadro sociológico da formação do músico brasileiro em geral.
Ao sair de Livramento para estudar em Salvador, Lindembergue passou a integrar um conjunto que fez história na Bahia, o “Bazooca”, ao lado de Carlos Veiga, Alcivando Luz, Alcyone, Edvaldo Brito, Rony Cócegas, Maria Creusa e outras figuras hoje bastante conhecidas. O “Tropicana”, o “Avanço”, a orquestra do Tabaris também entraram na vida de Beg, que teve como companheiros instrumentistas como Vivaldo Conceição, Perna, Tuzé de Abreu, Tuti Moreno, Moacyr e Perinho Albuquerque, além de outros igualmente importantes.
Toda uma grande geração de músicos populares e eruditos está presente nestas memórias que são mais do que um relato pessoal e bem humorado. Estas memórias do maestro Lindembergue Cardoso constituem uma autorizada perspectiva das interrelações entre a música popular e a música erudita no Brasil. Um documento que merecerá respeito e atenção dos estudiosos, embora para nós, seus amigos e admiradores, seja também um espaço mágico de reencontro com o velho Beg. Que hoje toca seu sax dourado e rege um coral de vozes antigas nas brumas da eternidade.

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Palavra de músico. Artigo sobre o livro Causos de músico; memórias, de Lindembergue Cardoso. Salvador, EGBA, 80 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 15 mai. 95, p. 7.

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