18/11/2015

Literatura e psicanálise

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas

Aproximações entre Literatura e Psicanálise


             Fiel cidadão de Atenas – da cultura –, Platão idealizou uma República e de lá expulsou os poetas. Nos vinguemos dele, inventando a república dos poetas, dos meninos e dos malucos, onde o chão não seja o deste mundo, mas a terra que se pisa se confunda com as mãos e o corpo de um poderoso e imenso gênio das lâmpadas maravilhosas, ainda encontráveis no desconhecido oriente. Onde os nossos desejos mais fundos e defendidos da luz possam se materializar, brotando da terra – mãe boa, ou gênio amigo – o objeto cobiçado.
             Mas esta república impossível já existe. Exploremos suas veredas, levados pelas mãos de Freud. Para ele, as primeiras manifestações da atividade poética enquanto exercício inventivo ou criação fantasiosa podem ser procuradas na criança: todo menino ao brincar se conduz como um poeta, criando um mundo próprio e situando as coisas do seu mundo numa nova ordem, que lhe seja mais favorável.
             Outro ponto de contato entre o jogo da fantasia infantil e a atividade poética é que o menino leva muito a sério sua brincadeira; daí, a antítese do brincar não ser a gravidade, mas o que os outros entendem por realidade.
             Apesar da carga de afeto do brincar, toda criança distingue muito bem a realidade da cultura da realidade da sua brincadeira, apoiando os objetos e circunstâncias que inventa nas coisas possíveis e tangíveis do mundo objetivo criado por outro demiurgo. O menino mistura a areia da sua fantasia com o cimento da realidade cultural, para que o vento não leve as montanhas inventadas; agindo, portanto, com a malícia ingênua e eficaz que antecipa a intencionalidade do poeta, enquanto engenheiro cujo projeto ultrapassa o concreto. Daí a aproximação proposta pelo criador da psi­canálise entre a estru­tura do jogo infantil e a da criação poética: "Ao crescer, as pessoas param de brincar e parecem renunciar ao prazer que obtinham do brincar. Contudo, quem compreende a mente humana sabe que nada é tão difícil para o homem quanto abdicar de um prazer que já experimentou. Na realidade, nunca renunciamos a nada; apenas trocamos uma coisa por outra. O que parece ser uma renúncia é, na verdade, a formação de um substituto".
             Compreendemos com Freud que a arte é uma forma de prazer substitutivo, tanto para o criador quanto para o fruidor do seu jogo, onde o desrespeito às regras não causa danos reclamados pela cultura. Mas será que a arte aceita assumir apenas este papel de protagonista substituto, ou procura construir seu próprio espaço?
             Desde o início do século, com a obra pioneira de Freud, ou, mais precisamente, desde há quatro séculos antes da Era Cristã, com Platão e Aristóteles, sabe-se que a fantasia é uma satisfação de desejos ou uma retificação da realidade não satisfatória. A noção aristotélica de catarse torna-se o fundamento do método clínico utilizado por Breuer e Freud: a cura pela fala, ou um tratamento que inicialmente Breuer chamou de «catártico», mas que Freud preferiu denominar de «psicanalítico».
             Não nos afastemos, porém, das fantasias e devaneios, dos brinquedos do desejo, inesgotáveis fontes, que são, da matéria bruta processada no engenho da arte. Compreender as propriedades deste material nos ajuda a compreender um pouco o conteúdo do discurso da arte e a especificidade da sua expressão, já que ambos os planos, na relação amorosa da criação poética, preparam o nascimento do texto.
             Como as pulsões insatisfeitas são as forças propulsoras da fantasia, Freud conjecturou que só o homem inteiramente feliz deixaria de fantasiar. Como há sempre uma fenda, uma ausência, uma falta, ele compara as fantasias do adulto, seus devaneios e sonhos diurnos, com as brincadeiras e jogos infantis, observando que se o transgredir a realidade socialmente compartilhada é motivo de vergonha para o adulto – tanto que prefere confessar suas culpas que revelar suas fantasias –, a criança não se envergonha do seu distanciamento e subversão dos códigos do real adulto.
             Como este real não é construído pela natureza, mas pelas circunstâncias de cada cultura, acredito que nada obriga às criaturas adultas em estado puro, original ou selvagem, a se identificarem com as máscaras e personagens que cada pessoa veste e encena no espaço de convenção: a cultura. Quando o pano de boca se abre e inaugura para os indivíduos o palco iluminado da civilização, as pobres e divididas marionetes gaguejam seu difícil papel. Somente depois, familiarizados com a presença e os aplausos da platéia, ou resignados com suas vaias ou sua indiferença, deixam a máscara grudar na face e esquecem as engrenagens dos escuros bastidores.
             Mas se o papel desempenhado não é bem aceito pela platéia, o ator da cultura questiona seu texto e oscila entre uma máscara e outra. Procura-se construir um novo personagem, emissor de uma fala que lhe permita maior ressonância junto aos discursos da cultura. Ou restará ao personagem a alternativa de rasgar os papéis e dar a palavra ao Outro, que falará por si mesmo, pelo homem.
             Avesso do personagem do teatro, o personagem da cultura não pode, impunemente, encenar o desejo, guardando as fantasias insatisfeitas em cofres de atos falhos, ou sepultando o desejo acorrentado, sob as pedras do sintoma.
             Se o menino que brinca consegue transpor as grades e muros da realidade, o artista reinstaura, na idade adulta, a linguagem esquecida, recuperando a vitalidade e a liberdade capazes de refazer o real, desta vez corrigido, estruturado de uma forma mais adequada e acessível à felicidade clandestina.
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Aproximações entre literatura e psicanálise. Artigo teórico sobre o ensaio Escritores criativos e devaneio, de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago (Obras Completas, Vol. IX). Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 20 mai. 96, p. 7.

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