18/11/2015

Literatura e viagem

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas

Literatura de viagem: o reverso

            A chamada literatura de viagem constituiu importante filão das letras no século XVI, quando homens de educação formal e algumas luzes de saber que ousavam a aventura marítima escreviam mirabolantes relatos para contar a sua viagem pelo desconhecido. Os olhos maravilhados pelo novo, descoberto em terras desconhecidas, viam ainda mais maravilhas. E os relatos dos viajantes tornavam o mundo recém-descoberto ainda mais fantástico. Os portugueses produziram páginas inesquecíveis, incluindo a Viagem trágico-marítima e a Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, sendo esta última uma leitura de grande público até o século passado.
            Mas este filão de relatos, ora produzidos por simples cronistas, ora por ficcionistas nascidos por exigência da tarefa de dizer o indizível, deixou rastros notáveis na literatura européia. Escritores criativos tomaram o filão como pretexto de inventos exemplares, como As viagens de Gulliver ou mesmo Alice no país das maravilhas. A realidade maravilhosa autorizou a imaginação a passear por lugares inventados.
            Agora, quando Portugal e o Brasil se preparam para comemorar os quinhentos anos do descobrimento, a temática adquire especial atrativo. A obra de Fernão Mendes Pinto, por exemplo, foi revista criticamente por um jovem estudioso, o professor Francisco Ferreira de Lima, que produziu um dos melhores estudos sobre o tema, incluindo-se entre os eruditos que em Portugal ou em outros países se ocuparam da Peregrinação.
            Se o tema vem propiciando estudos e discussões é natural que também desperte a imaginação criadora. Que cronistas e viajantes do nosso tempo empreendam uma viagem reversa as viagens do século dos descobrimentos.
            Uma surpresa agradável foi a leitura de algumas das páginas mais bem concebidas da novela de Remy de Souza O Degredado: desventuras, aventuras e venturas do primeiro português no Brasil. Mesmo não sendo um ficcionista, o professor Remy, homem de leituras diversificadas, propicia momentos de boa diversão num texto que, se mais trabalhado, seria sem dúvida uma obra de ficção deliciosa.
            Sendo ele mesmo um viajante deslumbrado, que realiza trajeto inverso ao dos europeus do século XVI, também registra em letra impressa as peripécias das suas descobertas. Há cinco séculos, os europeus saíam de lá para ampliar os horizontes com as maravilhas do novo mundo. Hoje, muitos brasileiros vão para lá, também para ampliar horizontes, no velho mundo. É o reverso da viagem.
            Curiosamente, o livro de Remy de Souza registra este percurso. A escrita de ficção que ele nos apresenta finge ser uma crônica de achados. O narrador do livro O Degredado é um tradutor e estudioso da cultura francesa que encontra um antigo manuscrito numa loja de alfarrábios da Bretanha. É o relato contido neste precioso pergaminho que vai constituir a trama da novela. Sem recursos para adquirir este autógrafo de um certo Afonso Ribeiro, degredado deixado por Cabral em Porto Seguro, o viajante e tradutor faz-se amigo do alfarrabista e consegue copiar trechos do ambicionado documento.
            Ao obter recursos no seu país para voltar à Bretanha e comprar o manuscrito, o malsucedido investigador descobre que, neste ínterim, a velha casa de livros foi destruída por um incêndio, desaparecendo assim o precioso documento. Restou-lhe então, baseado nas anotações que tinha feito, preparar uma tradução do impreciso relato de Afonso Ribeiro.
            Infelizmente este primeiro “motivo” narrativo, o achamento e a perda do manuscrito, não é explorado como peripécia viva e central da trama. Preferiu o autor dar a este motivo o simples estatuto de elemento responsável pela “veracidade” dos acontecimentos, conforme a tradição dos narradores românticos.
            Se ele tivesse ido além do procedimento dos ficcionistas românticos, isto é, se tivesse usado o pretexto do achamento do manuscrito como narrativa paralela à narrativa do naufrágio, constituiria dois eixos narrativos capazes de criar uma tensão e de envolver ainda mais o leitor. Mas Remy de Souza, apesar de ser um estudioso que percorreu muitos caminhos, ainda é um quase estreante no mundo da ficção. Bem verdade que há mais de vinte anos ele publicou um conto que mereceu um instigante comentário de um leitor do porte de Carlos Drummond de Andrade. “Sururu à Brasileira” é o título da narrativa, na qual um grupo de militares se fantasiava de carnavalescos para sufocar um levante contrário ao regime então vigente. Num momento em que era perigoso ressaltar aspectos hilariantes nos gestos dos militares, então desprovidos do menor senso de humor, a bem humorada comédia de enganos escrita por um ex-aluno da Escola Superior de Guerra causou interesse pelo ambíguo tratamento do tema. Mas o fato de Remy de Souza ser um ficcionista bissexto torna a sua experiência ainda insuficiente para desenvolver os núcleos narrativos que concebe, como no caso desta nove de ambicioso enfoque.
            Sem dúvida, ele tem dois eixos interessantíssimos, mas oblitera o primeiro e elege o segundo. Fica reduzido, portanto, a um único fio narrativo constituinte da sua novela e não de um romance, como aparece na ficha de classificação do livro.
            Enquanto a novela é composta de episódios centrados num eixo qualquer, o romance é, neste sentido, “polifônico”. Narrativas diversas confluem para o enriquecimento da narrativa central, como afluentes que engrossam as águas de um grande rio.
            É este o principal reparo que a crítica pode fazer ao livro de Remy de Souza. Ele, de fato, sabe contar uma história com certa graça. Alguns capítulos são lidos com vivo interesse, mas o leitor é frustrado quando, nas últimas páginas o “fôlego” do narrador parece diminuir progressivamente até expirar, como um náufrago que agoniza na praia. Desta forma, a narração antes promissora e ambiciosa se torna menos viva. Os acontecimentos escasseiam, deixando no leitor a sensação de um gesto suspenso no ar.
            Para chegar a um resultado à altura do tema – os descobrimentos, as maravilhas da literatura de viagem – seria necessário bem mais trabalho, bem mais elaboração. As poucas páginas de uma pequenina novela são insuficientes para a potencialidade do material apresentado neste livro.
            Mas vale a pena lê-lo como fonte para alguma coisa outra. Não se impressione o leitor com os conceitos do autor postos na boca do narrador nas duas primeiras páginas. As considerações de ordem pessoal do professor Remy de Souza, a respeito de livros, são um tanto ingênuas; e o tom conceitual aí assumido entra em choque com a linguagem da narrativa.
            Se o moralista Remy de Souza cedesse lugar ao narrador comprometido com a narrativa e a hinstória que concebe (e não com as suas predileções didático-filosóficas) teríamos um resultado bem melhor porque para fabular e contar uma história ele leva jeito. Aquele jeito de quem não quer nada e vai dizendo as coisas. É preciso apenas trabalhar este dom e deixar a inconsciente falar. O superego serve para discursos solenes e despachos burocráticos. Para a literatura convém dar passagem ao id. Àquilo que corre solto, como cavalo no pasto.

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Literatura de viagem: o reverso. Artigo crítico sobre o livro O Degredado, de Remy de Souza. Novela. Salvador, EGBA, 1996, 86 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 22 jul. 96, p. 7.