15/11/2015

Malva

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas


O romance que não se escreveu



 “O texto literário,
no seu equilíbrio
e na sua límpida economia,
anda pelas pernas da imaginação e dos imprevistos recursos.”




            Malva é um romance cuja trama se desenrola numa cidade qualquer da imaginação ou da lembrança. Sua autora, como demonstram os percalços do texto, é uma estreante nas viagens de longo curso da ficção. O protagonista narrador, um jovem médico que, despido da arrogância acadêmica, descobre o mundo de saber e humanidade da gente simples e distanciada dos labirintos da aldeia global. Ele mesmo é uma destas criaturas sábias que sabem ver e ouvir a natureza e uma das suas criações mais complexas (ou mais complicadas): o homem.
            A leitura deste romance, apesar dos pontos que ainda precisam ser trabalhados, revela desde já alguém que traz em si a sensibilidade necessária para contar as histórias mais fundamente guardadas na nossa alma. Dito isto, tornemos o exercício da atividade crítica útil não apenas ao leitor, mas também ao autor, cujo envolvimento com o processo de criação, quase sempre, impede o distanciamento e a isenção necessários à análise dos elementos que funcionam e daqueles que emperram o desempenho do todo.
            Ana Isabel forja uma trama de destinos cruzados, onde os personagens Malva e Nardo, amantes no desencontro, são reescritos na desdita pelo velho Gonçalo e por sua filha Maria Alecrim. Há mesmo uma grandiosidade trágica nos enredados caminhos destes personagens, cuja escrita de Ana Isabel não foi suficientemente trabalhada para dizê-los. Os personagens crescem na fabulação desta romancista-estreante, mas seus recursos narrativos, sua escritura, ainda não estão maduros para conter seu engenho criador. Este livro ainda não está definitivamente escrito. O caráter experimental da escrita de Ana Isabel Rocha Macedo precisa ser mais sedimentado para estabelecer o necessário equilíbrio com a força da sua imaginação de criadora.
            O caráter metalingüístico da narrativa estabelece a substituição do narrador-protagonista pelo narrador-autor. Criador e criatura dialogam no texto, numa evidente evocação a Pirandello. Mas este diálogo precisa de mais naturalidade. Mesmo as tentativas que o protagonista-narrador faz para se aproximar do leitor, envolvendo-o no processo de construção da narrativa, se perdem no artifício, sem lograr refazer-se como realidade alternativa. Diria mesmo que – ao invés de provocar o leitor com o objetivo de atraí-lo para o interior da narrativa, tornando-o não mais um espectador, mas uma criatura solidária, conforme pretende, – o narrador consegue apenas chatear o leitor. Suas intervenções mais parecem uma birrinha de comadres desocupadas. Este é um dos pontos que precisam ser resolvidos com mais trabalho e inventividade.
            Os personagens de Ana Isabel, às vezes, falam como um professor de literatura, numa excessiva sistemática cartesiana do pensamento.  A autora usa aquilo que aprendeu na condição de profissional do ensino na construção do seu romance. Mas a escritora precisa expulsar a professora do seu mundo ficcional, ou precisa escondê-la – convertê-la em figura da sua paisagem. O vocabulário do narrador está contaminado pelo jargão do discurso acadêmico. Somente um chato, nos seus momentos de viagem interior ou de amena conversa amiga, pensa e fala como um intelectual diante da assembléia. Bem verdade que muita gente continua com a alma engravatada nos seus momentos de prosear. Mas não é o caso dos personagens de Ana Isabel. Eles são gente de outra lavra. É a linguagem que precisa ser mais bem trabalhada, para ganhar a naturalidade da fala cotidiana ou do diálogo romanesco bem urdido.
            O registro lingüístico dos personagens do meio rural continua sendo representado neste romance com as caricatas marcas ortográficas da chamada fala inculta. O “escrever errado” como forma de representar o “falar errado” não tem nada de expressivo. Cabe ao autor marcar criativamente a variação do dialeto dos seus personagens. Fazer uma espécie de transcrição fonética estropiada é apenas repetir um lugar comum.
            A inserção de um vocábulo aqui e de outro ali, marcando a diferença da fala, ora pela ortografia, ora pela morfologia ou pela sintaxe, pode ser mais “artística” ou mais verossímil. A arte não precisa arremedar a natureza, mas imitar alguns dos seus aspectos mais relevantes, sem permitir que a repetição do artifício se torne mecânica e inexpressiva.
            Ainda com relação às muletas do narrador, o texto cresceria se expurgasse os recursos que não funcionam, mas servem apenas para entulhar a escrita. Da página 79, por exemplo, colhemos um destes montinhos de lixo que podem ser varridos da luminosa cidade que Ana Isabel nos oferta. Vejamos: “Enfim, voltando ao fio temático do que eu estava narrando, e, falando sério...” Ora, professor de literatura, ensaísta, crítico literário, filósofo cartesiano e soldado de polícia podem falar assim. Mas o texto literário no seu equilíbrio e na sua límpida economia não precisa destas muletas para andar. Ele anda pelas pernas da imaginação e dos imprevistos recursos.
            Por fim, a retirada do narrador na página 104 não tem a força exigida pela situação engendrada. O caricato “aviso” que marca a substituição do narrador-protagonista pelo narrador-autora retira todo encanto do recurso. Esta passagem não precisa ser alardeada com tantos alto-falantes. Aliás, ao longo da narrativa se anuncia a fuga do narrador. O seu silêncio enquanto narrador e enquanto personagem encarregado de redigir o atestado de óbito do personagem-motivo, o velho Gonçalo, poderia por si mesmo falar mais alto do que as inúteis páginas 104 e 105. Aquilo que Bakhtin chamou de dialogismo em Dostoievski, ou, simplificando, a mudança de linguagem, marcaria a substituição do narrador.
            Não conclua o leitor que a enumeração de pontos vulneráveis do livro diminui o mérito da autora. Pelo contrário, o rigor do olhar decorre da seriedade atribuída ao objeto. Cremos, portanto, que o potencial criador de Ana Isabel Macedo fará deste primeiro exercício de escrita o caminho para o romance que não se escreveu e continua pedindo para ser escrito. O reinventar é tarefa do artista.

O romance que não se escreveu. Artigo crítico sobre o livro Malva, de Ana Isabel Rocha Macedo. Belo Horizonte, UESB, 1995, 108 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 10 jul. 95, p. 5.


 “As mulheres,
no delicioso século de Luiz XV, haviam afeminado os homens;
de lá para cá passaram
para o gênero masculino”.

            

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