18/11/2015

Obras primas

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas


Obras primas do conto

Os contos de Faraco são lidos primeiro pelos olhos e depois, com os olhos abertos ou fechados, pelo turbilhão de claros e escuros da mente. É como se o pensamento não acompanhasse a vertiginosa cachoeira de sentidos derramada pelo concentrado discurso deste autor modelar.

            Sergio Faraco, uma das vozes mais altas da prosa de ficção em língua portuguesa, tem agora os seus Contos Completos publicados pela L&PM, reunindo assim num único volume pequenas obras primas do conto brasileiro. Gaúcho de Alegrete, Faraco publicou seu primeiro livro – Idolatria – em 1970, sendo autor de quinze volumes de contos, crônicas, ensaios e história antiga, além de tradutor de mais de vinte livros de ficção latino-americana.
            Tendo cursado o Instituto de Ciências Sociais de Moscou, de 1963 a 65, passou a residir em Porto Alegre, sendo detentor de prêmios literários como o Galeão Coutinho, atribuído pela União Brasileira de Escritores ao livro A dama do Bar Nevada, em 1988. Já foi publicado em países como Alemanha, Argentina, Bulgária, Chile, Colômbia, Cuba, Estados Unidos, Portugal, Uruguai e Venezuela.
            Apesar da vasta e diversificada produção, como contista, Sergio Faraco é autor de uma obra pequena e densa. Seus contos, quase todos breves, caracterizam-se pelo poder de condensação e sugestão da poesia, muito embora a estrutura da sua narrativa revele o melhor da prosa brasileira de todos os tempos. Dominando a narrativa clássica e, simultaneamente, inventiva, Faraco parece querer passar a limpo, ou reinventar, a escrita mais límpida da nossa tradição literária.
            Desde Graciliano Ramos, um nordestino da primeira metade do século, até Sérgio Faraco, um sulista deste final de milênio, a narrativa de ficção alcançou no Brasil um poder de síntese que exige do leitor a atenção voltada para o desenrolar da trama e a tessitura do discurso. O dizer preciso e econômico, ao tempo em que amplia as possibilidades comunicativas, enriquece o universo conceitual por tornar mais perceptíveis as sugestões do indizível.
            Se, de um lado, a prosa generosa e rica de enfeites – que recoloca os torneios barrocos como traço da chamada pós-modernidade – sustenta na redundância e na repetição o seu poder comunicativo, diluindo a tensão e a atenção do leitor, do outro lado, onde Faraco se inscreve, a escrita estrita requer o máximo de concentração do fruidor.
            Potencializadas, tensão e intenção, tanto por parte do escritor quanto do leitor, é possível estabelecer um diálogo calcado na sensibilidade e na razão por todos os espaços do texto. Daí a riqueza de sentido presente nos pequenos textos de Sérgio Faraco. Textos construídos para serem relidos, revisitados, nunca lidos num perpassar de olhos.
            A experiência de leitura dos seus livros nos ensina – desde 1978, quando do lançamento de Hombre, pela velha editora Civilização Brasileira – que cada releitura é uma nova descoberta, que cada reencontro com um conto de Faraco faz brotar uma nova obra, nascida do engenho do autor e da experiência interativa do leitor.
            Mas por que os contos deste gaúcho crescem aos olhos do leitor a cada vez que são relidos?
            Os teóricos do conhecimento insistem no fato de que conhecer é reconhecer. Freud dizia que, quando os sentidos entram em contato com um objeto, o cérebro procura ligar esta percepção com a lembrança de uma percepção anterior, fundindo o registro com a nova apreensão. Somente aí se daria o conhecimento propriamente dito.
            Ora, os contos de Sérgio Faraco não são meras histórias bem escritas, mas a construção de um mundo até então desconhecido, ou, pelo menos, a representação do velho mundo conhecido em meio a lugares nunca visitados. As velhas situações são iluminadas pelo foco da narrativa deste contador de histórias breves e densas como um raio de luz na escuridão. A marca deixada na retina não se apaga, mas volta em clarões de relembrança, prolongando na mente do leitor o breve – e não concluído – ato da leitura.
            Assim, os contos de Sérgio Faraco são lidos, primeiro, pelos olhos e depois, com os olhos abertos ou fechados, pelo turbilhão de claros e escuros da mente. É como se a velocidade do pensamento não acompanhasse a vertiginosa cachoeira de sentidos derramada pelo concentrado discurso deste autor modelar. A leitura prossegue, depois de virada a página; ela nos persegue e surpreende em cada esquina do pensamento, nos fazendo rever o mundo com olhos diferenciados, ou sob um ângulo ainda não conhecido.
            A surpresa do velho que não sabíamos novo – ou o abismo do insondado. – É o que nos ensinam as palavras avaras e cheias de recato deste contista.
            Uma escrita com tais labirintos, que continua sendo lida mesmo quando os olhos deixam de ler, também é uma escrita que não cessa de se reescrever. Daí a constante obsessão do autor em encontrar uma forma perfeita e irretocável. A cada nova edição, cada conto é reescrito, refeito, em busca de outro brilho escondido por entre as faces das palavras. A lavra prossegue, tentando arrancar a última cintilação possível de um sentido recém-conhecido.
            Saímos do livro de Sérgio Faraco com a sensação que teria o recém-nascido, se pudesse perceber as surpresas do mundo. Saímos atônitos e atentos para a invenção da vida.
            Trata-se, portanto, de um mestre do conto brasileiro de hoje e de qualquer tempo. Um escritor essencial no horizonte da literatura de língua vernácula, cuja obra breve e absolutamente luminosa não pode ser desconhecida por um só leitor de bom gosto.
           
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Obras primas do conto. Artigo crítico sobre o livro Contos completos, de Sérgio Faraco. Porto Alegre, L&PM, 1995, 304 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 4 mar. 96, p. 7.


Saímos do livro de Sérgio Faraco
com a sensação que teria o recém-nascido,
se pudesse perceber as surpresas do mundo.  Saímos atônitos e atentos
para a invenção da vida.

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