07/11/2015

Questões de gênero

Autoria Feminina na Literatura Brasileira

Cid Seixas

Questões de gênero – Se quisermos compreender as questões de gênero como assunto inerente aos estudos da literatura – e não como questão cultural específica e autônoma, o que se constitui uma realidade – convém observarmos a gênese e as transformações da Voz Feminina no discurso literário. Como se sabe, a mulher, ou a voz feminina, comparece inicialmente nas manifestações artísticas como ficção masculina.

Na literatura de língua vernácula, o marco inicial dessa presença é atribuído às cantigas de amigo. Quando os trovadores recriam os cânticos de habib das mulheres de língua moçárabe estão iniciando a imputação de voz à mulher na arte literária e musical da Idade Média Ibérica.

No caso nascente da cultura brasileira, mesmo quando José de Alencar, com seu projeto de “invenção do Brasil” (feliz título de um estudo sobre o tema), projeto este que contempla deste a identidade nacional, através dos seus fundadores, até as abordagens psicológicas, econômico-sociais e de gênero. Embora possa parecer demasiadamente elástica a caracterização, como questão de gênero, de romances como Senhora, é na caracterização da personagem Aurélia que o lugar da mulher se instaura de forma epifânica na literatura brasileira.

Quando à ótica masculina traçava ou projetava a imagem da mulher como muito próxima da imagem da criança, Aurélia ganha voz como a responsável pela construção do universo em que vive. Pode-se chamar a isso de uma romântica caracterização da voz feminina, ou como uma romântica ficção masculina. Mas algo de novo surgia no discurso literário brasileiro.

Os estudiosos da questão de gênero, certamente, voltarão ao bordão segundo o qual é uma perspectiva ou um olhar masculino que aí se instaura. Mas, rigorosamente, mesmo quando as mulheres começam a fazer literatura, o olhar masculino continua vigente, porque este olhar era o único presente no cânone literário. Como a literatura sempre se fez através da reconstrução ou da desmontagem dos modelos anteriores, o cânone é o esqueleto e o fantasma falante de tudo que vem a constituir a tradição e a ruptura.

Duas autoras migrantes do Nordeste – Quando, em meio aos ásperos e viris brados de romance de 30, uma menina de 17 anos escreveu o romance O Quinze, a crítica ficou atordoada por não conseguir encontrar aí a voz feminina imaginada pela cultura patriarcal vigente.

A princípio, as mulheres procuravam escrever os como homens escreviam, inserindo assim o seu discurso no berço do cânone macho. A especificidade da fala feminina teria que se fazer presente de forma sutil, dissimulada e quase escondida, como sutis são as armas usadas pelas mulheres, mesmo, nas mais acirradas batalhas.

Cecília Meireles, voz feminina de grandeza marcante no modernismo brasileiro, ao lavrar a escritura da sua poética, proclama e declara:

“Canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste
Sou poeta”.


O diálogo intertextual evidente com Fernando Pessoa, mestre da despersonalização, permite a Cecília inserir a lírica não mais na primeira pessoa, mas na terceira, na mesma voz do discurso épico.
Nesse diapasão, a fala feminina pronunciada por um homem ou a fala masculina proferida por uma mulher se impõe como dialogismo e como polifonia da ficção que é a poesia.

Clarice Lispector é vista pela crítica como uma das grandes vozes do século XX a plasmar por primeiro a água viva das experiências da mulher. Aí, já estamos diante de uma autora que atira suas setas de forma mais certeira. Mas mesmo nessa voz, marcadamente feminina, a questão inicialmente posta, isso é, que o cânone – masculino como o artigo que o rege – fala pela boca da autora.

Clarice não se esforça para “fazer gênero” ou, dito de outro modo, não há no discurso literário da autora a intenção flagrante de marcar o seu texto. Trata-se de uma voz da mulher naturalmente forjada pela vivência cotidiana e não de uma voz literária que quer escrever como mulher para expressar sua condição feminina. Se na contemporaneidade as preocupações da crítica com as questões de gênero propiciam a representação ou a mimese da voz feminina, na modernidade a voz da mulher se fazia ouvir em “estado de inocência primordial”, isto é, da forma inaugural. A escrita se fazia feminina quando emanava de um ser profundo marcado por vivencias que só uma mulher poderia ter.

É essa duplicidade antagônica marcada pela construção de uma narradora testemunhalmente feminina que a distingue de uma narradora ficcionalmente feminina. Com a distinção aqui ensaiada não se pretende, com a expressão “testemunhalmente feminina”, conferir a esse tipo de discurso o mesmo caráter da chamada literatura de testemunho. Pretende-se tão somente sublinhar que, embora sem uma deliberada intenção de “fazer gênero”, a condição testemunhal de mulher précondiciona a percepção do mundo e torna sua construção estética da realidade impregnada de traços e sugestões que somente uma subjetividade semelhante poderia produzir.

Aí a diferença abismal entre um narrador como o do romance Senhora, de Jose de Alencar, e um narrador masculino construído por Clarice Lispector em A hora da estrela. Mesmo se materializando em corpo de homem para contar uma história, o narrador de Clarice Lispector é mais feminino que o narrador dos bem realizados poemas musicais de Chico Buarque. A camada epidérmica de ambos os discursos poderiam até se igualar, mas a camada profunda, as imagens reveladas do palimpsesto aos poucos, restaurado; isso reconstitui uma outra realidade psíquica. As mulheres que falam nos poemas musicais de Chico, mesmo construídas a partir de uma sensibilidade e de uma argúcia exemplares, são na sua estrutura psíquica menos femininas do que o narrador masculino do romance de Clarice Lispector.

Daí a tentativa de explicar o fato com a expressão “narradora testemunhalmente feminina”. Com isso também não se quer dizer que o que foi chamado de “narradora ficcionalmente feminina” seria menos representativo de sentimento de mundo da mulher.

no tabuleira da (Escritura) baiana – Para aprofundarmos a discussão a partir de obras e autoras brasileiras, já que foram tornadas como objeto de análise escritoras procedentes de vários estados, como Raquel de Queiroz, do Ceará, Clarice Lispector, educada no Pernambuco, continuemos no Nordeste, arrolando autoras baianas, duas delas desterritorializadas: Sonia Coutinho e Helena Parente Cunha. Ambas passaram a viver na antiga capital da república e fizeram do Rio de Janeiro o cenário das suas ficções. Como Sonia Coutinho e Helena Parente Cunha, escritoras baianas já definitivamente incorporadas à história da literatura brasileira e não da literatura regional, uma terceira, Myriam  Fraga, mesmo vivendo na Bahia já obteve uma audiência nacional.

Se estes três nomes estão incluídos no repertorio da critica brasileira, alguns outros, de atuação local, constituem o acervo baiano de vozes que legitimamente deflagram e enriquecem o debate sobre as questões de gênero.

Uma pioneira é a escritora Amélia Rodrigues, nascida em Santo Amaro e que hoje dá nome a um município que faz fronteira com sua cidade de origem e com Feira de Santana, lugar de onde agora se fala. Amélia Rodrigues, não obstante a carga semântica atribuída ao antropônimo Amélia, pela canção de ideologia antagônica, é hoje arrolada em discussão sobre a mudança de percepção sobre o universo feminino.

“Nunca vi fazer tanta exigência
Nem fazer o que você me faz
Você não sabe o que é consciência
Não vê que eu sou um pobre rapaz

Você só pensa em luxo e riqueza
Tudo o que você vê, você quer
Ai meu Deus que saudade da Amélia
Aquilo sim que era mulher

As vezes passava fome ao meu lado
E achava bonito não ter o que comer
E quando me via contrariado dizia
Meu filho o que se há de fazer

Amélia não tinha a menor vaidade
Amélia que era a mulher de verdade”
(ALVES & LAGO, 2003)

Mas deixemos a Amélia plasmada por Athaulfo Alves e Mário Lago e voltemos à escritora Améria Rodrigues. Educada para a vida do lar, esta mulher de educação considerada avançada para os padrões dos fins do século XIX e início do século XX, atuou não só como ficcionista mas como militante da emancipação feminina. Bem verdade que grande parte do seu trabalho se deu em torno de entidades e espaços ligados à Igreja; mas que outros territórios poderiam acolher uma mulher de família tradicional no interior da Bahia?

Ironicamente (conforme a percepção atual), uma revista na qual ela atuou, abrindo espaço para outras mulheres, foi batizada como As Paladinas do Lar. Essa publicação já foi objeto de estudos de gênero, incluindo teses de doutorado e dissertações de mestrado orientadas pela professora Ivia Alves, na Universidade Federal da Bahia.

Outra pioneira na Bahia foi a escritora Edith Gama Abreu, a primeira mulher a integrar a Academia Baiana de Letras, nas falocêntricas décadas iniciais do século passado, durante os anos que procederam a afirmação da geração modernista de 1928.

Mesmo integrando o quadro de escritores responsáveis pela manutenção da tradição literária mais fechada aos rumores da modernidade tardia, ela teve que enfrentar a resistência dos seus pares pela condição de mulher. Ao se intrometer em “coisas de homens”. Uma resposta, indireta e não intencional, a esta mentalidade seria dada mais tarde pela voz poética de Myriam Fraga. Mas, por enquanto vejamos como a indignação masculina se manifestou, através de um “gênero” poético muito em voga na Bahia da primeira metade do século XX, o epigrama. Lacônico e certeiro, Silvio Valente poetou:

                   “Edith, escreva
                   mas, por favor,
                   não edite.”

Desde aí, palavra de mulher passou a ser como “uma pedra no meio do caminho”, tão incômoda quanto as palavras novas do modernismo.

Myriam Fraga, embora de uma geração mais nova, publica pela primeira vez ao lado de dois pontas-de-lança da geração de Arco & Flexa, revista nordestina dos anos 20, Godofredo Filho e Carvalho Filho, e de dois contemporâneos seus, Florisvaldo Matos e Fernando Peres. Os primeiros poemas da autora ainda não conferiam a ela um lugar privilegiado pela dicção nitidamente feminina. O livro Sesmarias, que no encaminhamento temática pode ser comparado a épicos modernos, como Mensagem, de Pessoa, ou Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, é uma captura de vozes históricas em torno da Cidade da Bahia e do feudo de Garcia D’Ávila. O mesmo tom constituiu outros livros da sua autoria, como A Cidade.  Somente nos anos finais do século passado Myriam Fraga elegeu, de modo eloqüente, os temas e os sentimentos femininos. No território da prosa biográfica ela realiza um substancial estudo sobre a vida de Leonídia Fraga, uma das primeiras musas do poeta Castro Alves. No seu próprio território, o da poesia, Myriam alcança o ponto talvez mais alto de sua criação como o livro Femina. Ainda através de viagens pelos tempos idos da história e da voz lírica contaminada pela ética, ela prossegue a encenação de dramas e conflitos de mulheres. O nítido processo de despersonalização ou de ficcionalização do eu lírico assegura ao livro um lugar privilegiado no quadro da poesia brasileira do nosso tempo.

Síntese de vozes e pensamentos, um verso seu, citado de memória, exprime a questão prosaicamente discutida: “poesia é coisa de mulheres.”

Que verso pode ser tomado para responder não só as vozes ressentidas do passado, contra a conquista de espaços pelas mulheres, mas à sensibilidade que é a pedra fundamental da poesia?

Outra autora que aprofundou cada vez mais a natureza essencialmente feminina da sua escrita é Helena Parente Cunha. Com o passar do tempo, apenas o sentimento profundo do eu feminino é exposto e posto a nu, mas a escolha de temas e personagens femininos passam a ser uma obsessão nos seus romances, poemas e contos.

O livro Cem mentiras e verdades, constituído por narrativas curtíssimas, e provavelmente o ponto mais denso da sua ficção, tem o mérito de representar ou, antes, sugerir, um painel psicológico dos conflitos da mulher.

Dois minicontos, “Tesão” e “Um e outra”, podem ser tomados aqui como expressão das angústias da mulher. No primeiro, uma cinquentona imagina cenas eróticas com cada homem que passa na rua, mas ao de deparar sozinha, no elevador, com o vizinho, treme de suores e febres, para recolhida ao quarto de virgem prolongar seus temores.
  
(Texto inédito, escrito como prova de concurso público para Professor Adjunto da Universidade Estadual de Feira de Santana, ao qual o autor se submeteu em dezembro de 2010, tendo sido aprovado em primeiro lugar.)