18/11/2015

Torga

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas


As montanhas do invento

           
            O ano de 1941 – em que Miguel Torga publicou no Brasil a primeira edição de Contos da Montanha – foi bastante significativo na trajetória do escritor português.
            Nascido em agosto de 1907, na aldeia de São Martinho de Anta, Trás-os-Montes, e morto em Coimbra em 1995, Adolfo Rocha (nome civil de Torga) viveu uma infância humilde na zona rural e veio para o Brasil aos treze anos, trabalhando numa fazenda em Minas Gerais como apanhador de café, destocador de pastos, vaqueiro e caçador de cobras. Diante das dificuldades enfrentadas como emigrante, retornou a Portugal cinco anos depois.
            A inteligência e a força de vontade de Adolfo Rocha possibilitaram que o trabalhador rural que retornou do Brasil ao alcançar a maioridade, publicasse seu primeiro livro apenas três anos depois, e cuja poesia viria a merecer, em 1930, a apreciação de Fernando Pessoa, numa longa carta. Formado em Medicina pela Universidade de Coimbra, Adolfo Rocha estabeleceu-se como otorrinolaringologista nesta mesma cidade, em 1941, onde passou a publicar – ele mesmo – todos os seus livros. É ainda neste ano que sai o primeiro dos quinze volumes do Diário, considerado como um dos textos mais densos e instigantes no gênero.
            De trabalhador rural a médico conceituado, a ascensão permitiu ao escritor se dedicar à sua obra que chega a mais de cinquenta volumes, publicados em edições do autor, que cuidava pessoalmente de todos os detalhes.
            Por motivos ou circunstâncias ainda pouco conhecidos, os Contos da Montanha foram originalmente publicados no Brasil, onde alcançou três edições, a segunda em 1955 e a terceira em 1962. Somente em 1969 este livro passa a integrar a coleção editada pelo autor, depois de ser revisto e aumentado.
            Agora, os Contos da montanha chegam à nona edição, mais uma vez revistos e rescritos por Torga, pouco tempo antes de morrer. Esta era uma característica do escritor: retrabalhar cuidadosamente todos os seus livros, mesmo que se tratasse da décima ou da vigésima edição.
            Deste modo, os Contos da montanha chegam mais uma vez às mãos do leitor como uma obra nova e atual, mas sem perder as marcas de uma velha aldeia das montanhas de Portugal da primeira metade do século.
            É curioso observar nesta obra o equilíbrio conseguido entre a dimensão individual, psicológica, de cada personagem e a dimensão social. Nos anos quarenta, a literatura portuguesa procurava se libertar da excessiva valorização do plano individual, imposta pela chamada Geração de Presença, e se aproximava do engajamento e do realismo socialista do romance brasileiro de trinta. Ferreira de Castro, um dos precursores desta tendência neo-realista, levou para a imprensa portuguesa o debate sobre os escritores brasileiros do Nordeste, como Jorge Amado ou Graciliano Ramos, dentre outros.
            Foi com grande repercussão que o romance português abandonou as análises intimistas e adotou uma perspectiva de denúncia social, quando o aspecto humano das populações excluídas passou a ser o eixo central da obra. Escritores como Alves Redol, por exemplo, chegaram a copiar os clichês de um Jorge Amado inteiramente voltado para as exigência do Partido Comunista.
            Neste contexto de descobertas e caricaturas populistas, a obra de Miguel Torga, por não se submeter às exigências do Neo-Realismo, conseguiu atingir o equilíbrio que assegura a permanência de qualquer texto. A preocupação do autor com o destino das figuras de carne e osso que serviram de modelo aos seus personagens é patente tanto nestes Contos da montanha, lançados no Brasil em 1941, quanto nos Novos contos da montanha, publicados em Portugal, em 1944, com novas histórias e novos protagonistas de uma mesma aldeia marcada pelo sofrimento e pela pobreza.
            Mas a ausência de amarras prendendo o texto a um figurino ou a uma moda literária, embora afastasse o autor das discussões e da convivência com os grupos da época, deu uma dimensão menos restrita ao trabalho, assegurando o interesse do leitor de qualquer tempo e lugar.
            Vista com olhos de hoje, sem as paixões suscitadas pelos dilemas do realismo socialista, a obra de Torga é mais eficiente (mesmo enquanto documento de denúncia) do que os romances panfletários dos neo-realistas de deliberada atitude política. Enquanto o texto torguiano ampliou a dimensão dos problemas pelas lentes da arte, as obras comprometidas com as exigências do movimento Neo-Realista deram destaque às estratégias de denúncia política, perdendo-se nos estreitos limites da ética partidária.
            Mas não se pense que Miguel Torga, mesmo distante dos grupos literários estava indiferente aos destinos do seu povo e da sua pátria. Mais tarde, em 1968, ele escrevia no prefácio da quarta edição dos Contos da montanha: “Quatro décadas de opressão desfiguraram completamente a paisagem do país. A humana e a outra. Velhos desamparados, adultos desiludidos, jovens revoltados – num palco de desolação”.
            Mais alto, no entanto, do que o sentimento do autor é o seu poder de criar um universo ficcional que, mesmo sem exigir do leitor não politizado o engajamento intelectual, obriga a este leitor a se comprometer com o destino dos personagens das suas histórias. Torga não faz pregação humanitária. Faz tão somente histórias boas de se ler. Mas elas pintam com cores tão vivas uma realidade humana, que é impossível a qualquer outro ser humano não sentir uma ponta de simpatia e solidariedade pelos habitantes da montanha do invento.

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As montanhas do invento. Artigo crítico sobre o livro Contos da montanha, de Miguel Torga. Coimbra, Edição do Autor, 1995, 228 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 25 mar. 96, p. 7.

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