14/10/2015

Castro Alves

CASTRO ALVES E A CULTURA DO SÉCULO XX



Devo começar reconhecendo a impropriedade do título que escolhi para esta conferência: “Castro Alves e a cultura do século XX”. Quando o poeta Carlos Cunha, em nome da Academia de Letras da Bahia, me fez o convite e solicitou o título do texto a ser apresentado, respondi com algo ainda vago que, somente depois, iria tomar forma.
Entre as marcas da cultura do século XIX está um fato decisivo para a Europa e os países colonizados: a preparação literária do mundo moderno ou pós-moderno, como preferem outros. Se o Renascimento e seus desdobramentos posteriores reconstituem artisticamente o mundo clássico, o Romantismo prepara a modernidade literária.
O mesmo século XIX, que trouxe conquistas e avanços ainda hoje retomados pela pós-modernidade, impôs ao homem moderno valores tidos como ultrapassados mas capazes de atuar com forte poder coercitivo.
No Brasil, a sobrevivência de velhos costumes no mundo rural traçou o perfil de uma sociedade que optava pela vida urbana sem abrir mão da sua fisionomia rural. A religiosidade típica de um mundo fragmentado erigia-se em contradições e conflitos constituindo uma ética errante.
Dentre os traços da cultura do século XIX, a moral religiosa e o binômio amor / vida afetiva constituem o objeto deste trabalho.
Para chegar ao texto agora apresentado aos participantes do XXVI Curso Castro Alves, recorri ao livro do crítico baiano David Salles Do ideal às ilusões; alguns temas da evolução do romantismo brasileiro.
Sete artigos densos e bem fundamentados compõem esta obra que apresenta uma síntese das especulações de Salles sobre o romantismo no Brasil. O texto “Castro Alves e a lírica amorosa romântica” toma como linha condutora a tese segundo a qual o poeta lírico não é suficientemente reconhecido e valorizado. David Salles começa com as seguintes palavras: “A existência de uma imagem predominante num artista (...) impede, quase sempre, a devida atenção para que se veja a outra face. (...) termina-se por criar-lhe uma imagem parcial, desintegrada.”

         Ao longo do texto, que aqui recorto, ele reitera a idéia: “Em toda parte, quando se fala em Castro Alves, ele é tido e havido como “o poeta dos escravos”, o poeta libertário, condoreiro ousado  e arrebatado... Está bem, não é sem razão! Mas essa imagem cunhada impede (pelo menos ofusca) a imagem do lírico amoroso, vista só como apêndice.”

Este estudo do crítico David Salles contém muito do que eu gostaria de dizer sobre a poesia amorosa de Castro Alves. Relendo-o, reconheço agora o débito possívelmente contraído (pois até então não havia lido seu livro), num ensaio que publiquei no livro Triste Bahia, oh quão dessemelhante. Notas sobre a literatura na Bahia. No capítulo de abertura do volume, intitulado “Da presença de Eros na lírica romântica”, procurava fazer uma leitura refletindo as minhas preocupações com a psicanálise. Antes de ser incluído no livro, uma versão deste texto fui publicado em 1982 no Minas Gerais Suplemento Literário. Naquela época, o empenho em ligar a leitura da lírica castroalvina às descobertas de Freud e ao ensino de Lacan me impediu de perceber a identidade das minhas afirmações com o as pesquisas de David Salles. Retomando agora ambos os textos, o dele e o meu, para este XXVI Curso Castro Alves, remeto os interessados ao importante livro Do ideal às ilusões, publicado em 1980 pela Editora Civilização Brasileira.
Entre as marcas da cultura do século XIX está a irresolvida flutuação do espírito entre a vitalidade de Eros e a destruição de Thanatos. Entre o princípio do prazer e uma estática e soturna aceitação do princípio da realidade. Seguindo tais caminhos, revi um artigo escrito há anos sobre o Poeta Condoreiro, e aqui retomo as suas principais articulações, para caracterizar um aspecto da cultura burguesa instaurada ou consolidada no século XIX.
A moral sexual dessa cultura, rasgada por contradições e conflitos, se ressente da tensão entre o delírio fantasioso do desejo e a expiação obsessiva de culpas imaginárias. O homem, incendiado pela ânsia de vida e amor se proíbe a plenitude dessa experiência, recusando à mulher a condição de parceira na procura lúdica. Só é considerada merecedora do amor romântico a virgem de pureza passiva, enquanto a mulher que não se deixa vencer pelo bloqueio da libido poderá ser, apenas, objeto de desejo, saciado no fogo infernal do desprezo e da censura moral romântica.
Ao punir a mulher com a condenação ao bloqueio do desenvolvimento libidinal – substituindo o desejo pela ausência contida no símbolo "pureza" – ele se pune a si mesmo.
O fato da moral burguesa reservar, quase que exclusivamente, à mulher de categoria social menos elevada o papel de objeto sexual terminou por condicionar a identificação do prazer amoroso com aquilo que é mais desprezível aos olhos do burguês: a decadência na escala econômica ou social. Se a paixão dos sentidos se concretiza em chamas com uma pobre rapariga de subúrbio, o romântico não consegue dissociar as noções de prazer e pobreza aí articuladas. Como o não possuir riquezas se configura como o inferno burguês, o ser possuído ou possuída pelo prazer evoca constantemente esta temida situação.
Mas, como percebeu Dante Moreira Leite no livro O amor romântico e outros temas, a mulher foi o alvo das consequências mais anulatórias desse processo, para quem "O matrimônio seria afetivamente insatisfatório, e a permanente frustração encontraria fuga no romance de folhetim, que representava, portanto, uma necessidade no sistema de repressões da época. A situação do homem era, sem dúvida, mais cômoda, pois o ambiente social permitiria a busca de relações afetivas mais satisfatórias, sem que por isso devesse renunciar ao respeito da família e da sociedade. Para ele, o castigo seria de outra ordem: viveria atormentado pela idéia de que sua mulher também pudesse traí-lo. Para o romântico, o pior de todos os castigos."
No que diz respeito ao papel da arte de transitar para além das fronteiras demarcadas, articulando a conquista de um novo espaço e marcando a continuidade do processo histórico como evolução do homem, a lírica de Castro Alves merece maior atenção no quadro da Literatura Brasileira do século XIX. O mais rápido confronto deste poeta com toda a nossa tradição romântica, no que concerne ao tratamento do amor, põe, sem dúvida, o jovem autor de Espumas flutuantes numa posição menos comprometida com os "males do século".
Conforme demonstrou o crítico baiano David Salles, em importante conferência proferida há trinta e um anos atrás no velho prédio aqui em frente, onde funcionava o Instituto de Letras da UFBA; conforme demonstrou David Salles neste texto posteriormente incluído no livro Do ideal às ilusões; alguns temas da evolução do romantismo brasileiro, Castro Alves ocupa um lugar ímpar na lírica romântica por não ter limitado seu texto à simples expressão da ânsia de amar, como ocorre, por exemplo, com Álvares de Azevedo que cristaliza o ideal contemplativo da moral sexual romântica. Recorde-se o conhecido e admirado "Lira dos vinte anos":

“Oh ter vinte anos sem gozar de leve
A ventura de uma alma de donzela!
E sem na vida ter sentido nunca
Na suave atração de um róseo corpo
Meus olhos turvos se fechar de gozo!”

É evidente que, neste caso, o canto substitui a posse do objeto, conforme se poderá depreender do confronto destes versos com outros textos de Álvares de Azevedo, para quem o poema é uma forma de sublimação. Como o amor ideal não pode ter existência e imagem no ato humano de amar, considerado proibido pela consciência romântica, a sublimação através da poesia será a única maneira de resolução do conflito. Uma maneira precária, no caso em foco, que se alterna com a obsessão pela morte – único meio seguro de eliminação dos conflitos burgueses, conforme o testemunho da experiência romântica.
Manuel Bandeira, na Apresentação da poesia brasileira, reúne dados bastante significativos para uma análise do caso Álvares de Azevedo, arquétipo de uma época, como o trecho da carta do jovem poeta Álvares de Azevedo que diz:
"Sinto no meu coração uma necessidade de amar, de dar a uma criatura este amor que me bate no peito. Mas ainda não encontrei aqui uma mulher –  uma só – por quem eu pudesse bater de amores".
Álvares de Azevedo, é importante que se diga, vivia em São Paulo, importante centro urbano em processo de crescimento, onde as possibilidades de relacionamento afetivo eram maiores do que em pequenas cidades, marcadas pela mentalidade rural. Mas o que chamamos de cristalização do ideal contemplativo da moral sexual romântica levou o poeta a se proibir a vida da cidade, tendo inclusive deixado de frequentar certa casa de família pois – a expressão é do jovem mancebo Álvares de Azevedo –
“não é das melhores nem muito louváveis, pelo contrário, é bem nodoada a reputação dessas senhoras".
Este depoimento é por si mesmo eloquente, dispensando qualquer adendo, além das observações que nos permitem compreender a moral romântica como um sintoma. Não no sentido semiótico do termo, mas no sentido patológico.
Com argúcia e poder de síntese, Alfredo Bosi observa, com respeito a Castro Alves: "Com ele fluem sem meandros as correntes de uma renovada lírica erótica, tanto mais forte e limpa quanto menos reclusa no labirinto das culpas sem remissão.”
 Se o romântico não consegue viver em paz com a sensualidade e o amor sem culpas – isto é, se não consegue viver nos jardins das delícias, prelúdios, primícias e pomos ofertados por Eros, em decorrência do seu compromisso com a regressão e com Thanatos, o implacável senhor da morte – em Castro Alves, o culto ao antigo deus do amor é uma vocação, deliciosa devoção às divas e dádivas da vida.
Platão, no Banquete, antecipa muitas das reflexões dos nossos dias e coloca questões estimulantes e bastante conhecidas. Sua interpretação retira a aura divina de Eros, colocando-o entre os feitos e atributos do homem. Para o filósofo, o amor é simplesmente um desejo, uma privação: "Portanto, a pessoa, e quem quer que deseje alguma coisa, deseja forçosamente o que não está à sua disposição, o que não possui, o que não tem, o que lhe falta; ora, não são estes justamente os objetos do desejo e do amor?"
Opondo-se à crença dos seus contemporâneos segundo a qual Eros é um deus, o filósofo afirma que se trata de um gênio – traduziríamos: de uma força – que preenche o vazio que há entre os deuses e os homens. O objeto do amor seria sempre o desejo da imortalidade, assegura o autor de Banquete: "Não deves pois te espantar de que todos os seres amem o que procriaram, pois é devido ao desejo de imortalidade que amam e se desvelam."
Em outro momento ele reafirma que o amor é o desejo de possuir sempre, e nós podemos acrescentar: possuir o que é impossível. Irreversivelmente, Thanatos nos roubou o objeto que nos tornaria igual aos deuses: a permanência da vida, a imortalidade. Se Eros é para Platão a força perene da vida, sua grande luta será sempre travada com Thanatos. Mas, irremediavelmente, a vitória de Eros, quando ocorre, é sempre simbólica: a conquista do objeto roubado ao homem por Thanatos será realizada simbolicamente no fruto do amor. O filho é a continuação e a imortalidade dos pais, e, na ausência dos mesmos, seu símbolo.
A busca da imortalidade se opera na alquimia da transmutação da não-existência, seja criando, pela fertilidade do corpo, um outro homem, seja, pela fertilidade do espírito, concebendo obras que assegurem a permanência do criador. E arremata Platão, através da fala de Diotima:

"Pois o mesmo se dá com o amor: desejo do bom e da felicidade, em geral, eis no que para todos consiste o grande e astucioso Eros. Mas há muitos modos de dar satisfação ao amor e, dentre eles, o de procurar as riquezas, os esportes, a filosofia — aos quais todavia, não se aplicam corretamente os nomes de amante e amado; apenas a uma determinada espécie de amor e aos seus sequazes é que se dá o nome que de direito pertence ao gênero todo".

Podemos afirmar que segundo Platão todo amor é amor de transferência. Eros ama, através dos homens, ou os homens amam, através de Eros, não aquilo que é tangível para os homens, mas o que ele perdeu para o seu rival Thanatos: o que é amado no objeto simbólico de amor dos homens.
Com duas quadras que escrevi para um poema qualquer, permitam-me ilustrar a questão:

“Quero tudo que não tenho
porque nunca o terei,
desejo a rainha do sonho
na cama do próprio rei.

Não quero aquilo que quero:
o objeto é só o querer.
Não amamos quem amamos
mas o amor, modo de ser.”

         Mário de Andrade traduziu magnificamente esta idéia, que vem desde Platão, de que o amor é sempre amor de transferência, com o tema e o título de um dos seus romances: Amar verbo intransitivo.
         Foi, portanto, este mesmo Mário de Andrade que ressaltou o papel de Castro Alves na lírica amorosa brasileira, visto como uma espécie de estranho no ninho, por não ter circunscrito o seu canto à ânsia de amar, mas por ter celebrado a epifania do amor. Castro Alves se valia de etéreas figuras de linguagem, tão a gosto da época romântica, não para fugir do amor, mas para dar voz à experiência amorosa em sua completude sentimental e carnal. Plenitude que, segundo Mário de Andrade, Castro Alves foi o único a alcançar.
Se a aproximação das lentes de Mário de Andrade foi o objeto da conferência do poeta Ruy Espinheira Filho neste XXVI Curso Castro Alves, a leitura do poema “Mocidade e Morte” coube a outro nosso colega e professor do Instituto de Letras da UFBa., o Dr. Jacques Salah.
Em "Mocidade e morte", poema escrito em 1864, Castro Alves enfrenta o conflito entre os dois poderosos deuses da vida e da morte: Thanatos, senhor da desagregação, do tédio e do espírito romântico, e Eros, jovem arqueiro de movimentos vitais, que disputa o domínio da natureza para que esta frutifique.
É evidente a opção do poeta Castro Alves pelo filho de Afrodite, o arqueiro Eros, já chamado na letra de um rock brasileiro dos anos cinquenta de Estúpido Cupido.
O autor do poema “Mocidade e Morte” se agarra com mãos e garras à participação no teatro da vida. Vejamos os versos:

“Oh! eu quero viver, beber perfumes
Na flor silvestre que embalsama os ares;
Ver minha alma adejar pelo infinito,
Qual branca vela na amplidão dos mares.
No seio da mulher há tanto aroma...
Nos seus beijos de fogo há tanta vida...
– Árabe errante, vou dormir à tarde
À sombra fresca da palmeira erguida.”

"Mocidade e morte" é tomado por muitos leitores e críticos como uma profecia, onde o poeta antecipa a sua condenação: sabe-se que em fins de 1868 ele feriu o pé com um tiro, resultando em grave enfermidade que culminou na sua amputação e na morte do poeta. Frequentador da vida social e boêmia das capitais, o jovem de apenas vinte e um anos se recolhe à fazenda, em Curralinho, onde escreve várias páginas de poesia testemunhando sua luta contra Thanatos, vindo a falecer no dia 6 de julho de 1871. Este poema, escrito quatro anos antes do desencadeamento da tragédia da sua vida, ganha assim especial relevo e significado.
Se, por um lado, Thanatos se insinua impassivelmente, por outro, Eros é exaltado: "Oh! eu quero viver, beber perfumes". Aqui, é evidente a identificação dos símbolos mais "inocentes" da vida e da natureza com a condição sexual do animal humano, começando pela sinestesia que, em Castro Alves, bem pode ser lida ainda como metonímia. Lembre-se que em 1870 ele escreveu:

“O perfume é o invólucro invisível
Que encerra as formas da mulher bonita.
Bem como a salamandra em chamas vive,
Entre perfumes a sultana habita.”

Transformada a sinestesia – "beber perfume" – em metonímia, a carga erótica começa a se tornar mais evidente.
Nos versos "Ver minha alma adejar pelo infinito / Qual branca vela na amplidão dos mares" dois momentos devem ser sublinhados. Primeiro, o significante "adejar", que pode remeter ao significado "bater asas", mas pode também ser interpretado por analogia ao significante "adejo", que no nordeste brasileiro quer dizer "cavalo que vagueia sem cavaleiro". Desnecessário demonstrar a sexualização da imagem composta pelo cavalo que vagueia solto no pasto. Também já sabemos que a alma, em Castro Alves, é uma entidade sensual, animal (de "anima"), que não se quer amortalhada como uma sombra transcendental. Lembre-se, a propósito, o poema "Boa noite", onde se lê:

“Mulher do meu amor!
Quando aos meus beijos
Treme tua alma, como a lira ao vento,
Das teclas de teu seio que harmonias,
Que escalas de suspiros, bebo atento!”

A alma – "anima" – experimenta a sensação lasciva do toque amoroso. Por fim, nova sinestesia que pode ser lida como metonímia, onde aparece o mesmo verbo: "beber". Mais uma vez, "beber".
Voltemos aos dois versos citados acima. Se o primeiro "Ver minha alma adejar pelo infinito" – é uma figuração sensual, o segundo – "Qual branca vela na amplidão dos mares" – contém dois símbolos da maior força erótica. O mar é a mãe original, o símbolo da fecundidade por excelência. Também a água, que molha, tem o seu verbo – "molhar" – claramente incluído em contextos amorosos.
Os gregos ilustravam magnificamente esta concepção da água como colo fértil: Afrodite, deusa do amor, nasceu das águas. Cronos, o tempo, pai ancestral, perdeu seu reino para Zeus, seu filho, que lhe castra e lança os órgãos às águas do mar. Dessa semeadura, conta o mito, nasce Afrodite.
No poema de Castro Alves, a "amplidão dos mares" é semeada por "branca vela" metonímia de barco e, ao mesmo tempo, metáfora de sugestão idêntica a "palmeira erguida" ("No seio da mulher há tanto aroma... / Nos seus beijos de fogo há tanta vida... / – Árabe errante, vou dormir à tarde / À sombra fresca da palmeira erguida."). O aroma, o perfume, reaparece ligado ao fogo da vida. Também ligada à palmeira erguida está presente a figura do árabe, requintado amante e, segundo a tradição patriarcal, macho de muitas fêmeas.
Em outro momento do poema, as idéias contidas na estrofe analisada são reiteradas:

“Morrer quando este mundo é um paraíso,
E a alma um cisne de douradas plumas:
Não! o seio da amante é um lago virgem...
Quero boiar à tona das espumas...”

Se a água aparece na primeira estrofe com a fecundidade, o sal e a inquietude do mar, aqui ela reaparece com a tranquilidade doce do "lago virgem". Na figura anterior, a vela penetra no mar e nesta o cisne rasga o lago, boiando "à tona das espumas". Já este último verso – "Quero boiar à tona das espumas..." – evoca o cansaço de depois do amor: o se entregar ao repouso após o repuxo de sons e cores.
Sob imagens estereotipadas da natureza virgem, tão a gosto da fuga e do alheamento românticos, Castro Alves compõe um discurso sensual, onde é flagrante o desejo desesperado de fazer Eros cavalgar a vida, triunfando sobre Thanatos. No verso "Morrer... quando este mundo é um paraíso", as veredas de Eros, que se confundem com o espaço da vida mesma, em toda sua plenitude, transformam os territórios do homem em paraíso, lugar edênico que comporta a pulsão sexual. Observe-se que a tradição romântica tende a identificar esta pulsão como uma força demoníaca, em chamas como o próprio inferno, enquanto Castro Alves situa o reino de Eros, este estúpido Cupido, no mundo dos homens que, por isso, se transforma em espaço paradisíaco.
A sensualidade do ato de viver é exaltada, em confronto com o vazio, como nos versos:

“Ai! morrer  –  é trocar astros por círios,
Leito macio por esquife imundo,
Trocar os beijos da mulher  –  no visco
Da larva errante no sepulcro fundo.”

Como símbolos da vida, Castro Alves elege os astros no céu, a cama na alcova e os beijos da amante, antônimos dos círios e sepulcros. Se os poetas românticos, marcados pela regressão e pela natureza exigente e compulsiva que termina por ignorar o outro como fonte da vida, anseiam sempre pela dramaticidade suprema da morte, em Castro Alves o uso deste clichê é transformado em grito desesperado que espera tanger Thanatos, o manto da morte, para longe dos feudos da vida. Mesmo diante da presença fria do demiurgo da destruição, o poeta clama:

“E eu morro, ó Deus! na aurora da existência,
Quando a sede e o desejo em nós palpita...”

Aqui, a moral religiosa não teve força suficiente para instaurar o culto de Thanatos, com sua promessa de salvação mediante a aceitação de um projeto de vida onde o prazer seria atributo do Diabo e a dor, dádiva de Deus.
Observe-se ainda que, ao elevar o espírito numa oração vocativa, o poeta não se envergonha da sua nudez lasciva nem do gosto de maçã e vinho na boca diante do Senhor. Ele canta a vida como lugar da sede e do desejo, porque sabe que o prazer é um espaço mágico que habita o relâmpago e o céu dos sentidos, erguendo os pilares do paraíso. Aqui mesmo. Como preparação do outro.
Novamente a imagem da água, como força sensual, retorna vestida de novos significantes ("Quando a sede e o desejo em nós palpita"). Vale voltar às sinestesias metonímicas vistas acima, onde o verbo "beber" se enriquece de significados compostos por associações. Aqui, finalmente, aparece claro o motivo deste "beber" – quer sejam aromas ou suspiros: a "sede" – pulsão sinestésica.
Se Thanatos triunfa sobre o espírito romântico, em Castro Alves, o calor de Eros constrói a imortalidade presente no símbolo mulher.
Concluindo, vimos que o romantismo, enquanto movimento literário e conjunto de atitudes e idéias que emprestam uma feição particular ao século XIX, é fortemente marcado pelo triunfo da morte sobre o amor, ou, tomando como símbolos destas duas forças polares os deuses da mitologia clássica, o triunfo de Thanatos sobre Eros.
Embora os romances e poemas sentimentais e amorosos constituam a parte mais conhecida e admirada da produção romântica, é um equívoco supor o homem romântico como um cavaleiro do amor. Ele é, na verdade, o cavaleiro da morte. O amor é apenas uma peripécia, uma aventura a distrair a pulsão de morte que seduz e dirige o romantismo. A moral da religiosidade mais puritana, que domina o século XIX, propõe um amor inatingível, incorpóreo, onde o prazer é o objeto do pecado.
A contemplação, a espera e a imobilidade resignada são os valores supremos desta moral e as marcas do herói romântico.
Poucos escritores brasileiros e portugueses fugiram a este lugar-comum, onde a ânsia de amar substituía a vida amorosa. Castro Alves foi um poeta que deslocou radicalmente este modo de vida, ou este modo de morte tão em moda. Daí a atenção que é dada à sua vida aventurosa e à sequência de episódios donjuanescos que ilustram suas peripécias pela velha cidade da Bahia ou pela noite paulista. O homem e o poeta Castro Alves destoam do protótipo do homem e do poeta românticos. Os cantores suspirantes do século passado aceitavam como ideal supremo ser dobrados pelo sofrimento e padecer com orgulho e masoquismo o calvário do mal-do-século. Contrariamente, este singular poeta, deslocado da perversa tradição do seu tempo, tornou-se cantor e cultor do prazer e da vida.


BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, Mário. Amar verbo intransitivo. São Paulo, Martins, 1978.
BANDEIRA, Manuel. Apresentação da poesia brasileira. Rio de Janeiro, 1946.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 2ª ed. São Paulo, Cultrix, 1975.
CASTRO ALVES, Antonio de. Espumas flutuantes. In: Obras Completas. Rio de Janeiro, Aguilar, 1966.
LEITE, Dante Moreira. O amor romântico e outros temas. 2ª ed. São Paulo, Nacional, 1979.
PLATÃO. Banquete. In: Obras completas. Madrid, Aguillar, 1966.
SALLES, David. Do ideal às ilusões; alguns temas da evolução do romantismo brasileiro. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira; Salvador, Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1980.

SEIXAS, Cid. Da presença de Eros na poesia romântica. O objeto, a ausência e o símbolo no amor de transferência. Um exercício de crítica psicanalítica. Minas Gerais Suplemento Literário. Ano XX, nº 829. Belo Horizonte, 21 ago. 82, p. 6-7.